A trilogia da traição, de Elvira Vigna
Nessa edição um passeio pelos três últimos romances de Elvira Vigna
“Escrevo sobre coisas traumáticas - vividas, sabidas, vistas ou ouvidas por mim. A escrita é um processo meu de busca de sentido. Algum sentido. Porque a minha vida — acho que a de muito mais gente, se não de todo mundo — tem coisas completamente sem sentido. E aquele troço você não esquece, você guarda durante trinta anos e um dia escreve para ver se consegue entender.” - Elvira Vigna no Paiol Literário, em 2013.
Elvira Vigna, falecida em 2017, fazia aniversário em 29/09. Considerada uma das grandes vozes da literatura brasileira, trabalhou nos principais jornais do RJ e de SP, foi dona de editora, crítica de arte e teve uma carreira premiada como autora de livros infantis e juvenis, como ilustradora e, claro, como autora de livros para adultos.
Convivi com ela dos meus 19 anos de idade, quando conheci seu filho David, até a ocasião da sua morte. Convivência essa que me ensinou muito sobre como conduzir meus sins e nãos na carreira literária. Na ocasião do seu aniversário, uso essa edição da ENCRUZA para matar a saudade e, quem sabe, apresentá-la a novos leitores. Peço desculpas de antemão porque é impossível conter numa newsletter o que poderia ser dito sobre os livros da Elvira. Há muitos artigos acadêmicos sobre eles, para quem se interessar. Deixo meu texto, longo e curtíssimo ao mesmo tempo, mais como uma porta desenhada a giz na parede, pronta para ser aberta por quem quiser embarcar no exercício da imaginação.
“O escritor desestabiliza o leitor, procura fazer com que ele não tenha seus anseios atendidos — pelo contrário, faz com que tenha as suas certezas abaladas. É isso que qualquer arte digna do nome faz: destrói certezas, abre outras possibilidades.” - Elvira Vigna.
A Trilogia da Traição
Gosto de pensar os últimos três romances escritos por Elvira Vigna como uma Trilogia da Traição. Uma que foi meio que acontecendo no diálogo entre o consciente e o inconsciente, construída de maneira não proposital. Em “Nada a dizer” (2010) Elvira nos apresentou a uma narradora que é a mulher traída. Ela foi traída, descobriu, quer hablar mêixmo e está muito fula da vida. É tiro, porrada e bomba. Até que deixa de ser. Em “Por escrito” (2014) a narradora é a ex-amante de um relacionamento. Uma ex-amante que vê a possibilidade de se tornar o relacionamento oficial do homem com quem se relacionou e agora não sabe o que fazer com isso. Já em “Como se estivéssemos em palimpsestos de putas” (2016) a narradora é colega de trabalho e ouvinte de um homem acostumado a ter relações com prostitutas ao viajar pelo país, relações que o levaram a se separar da ex-esposa. A Trilogia da Traição é, então, um box imaginário criado por minha conta. Fica aí a dica, Companhia das Letras. Elvira nunca disse nada parecido. Mas são, de fato, embora muito diferentes em suas propostas, livros aparentados por esse fio curioso: a pessoa traída, a ex-amante e o homem que trai. E estrepar-se-á quem pensar uma leitura rasa e moralista disso tudo.
Além do tema em comum e de terem sido escritos em sequência, acho os três uma boa porta de entrada para se conhecer a obra da Elvira. Incluiria por fora meu xodozinho, “Deixei ele lá e vim”, o livro pop, queer e almodovariano da Elvira, protagonizado pela travesti Shirley Marlone que acaba se tornando suspeita de um crime (talvez esteja aí sua traição se a gente quiser aumentar a coleção, a traição entre amigos).
Mas vamos à trilogia…
Nada a dizer
Uma característica da obra de Elvira Vigna é o uso de narradoras que mentem. São pessoas ambíguas, em contínuo processo de construção, tão confiáveis quanto nós, não confiáveis até para si mesmas, e que nesse jogo de contar o que lembram, constroem um cenário em movimento. O que é dado como certo no início pode se mostrar algo muito diferente no final da história. Elas não contam o que é, o que foi. Elas contam o que pode ter sido. O resto faz parte do jogo da literatura. “Nada a dizer” talvez seja o livro que mais foge desse jogo, com a narradora repensando a vida de maneira muito sincera para processar a traição do seu companheiro de décadas. Para entender a mentira do outro é preciso se despir das próprias mentiras.
“Paulo fez o teste de HIV. Depois mostrou, condescendente. Li em seu rosto que ele achava que me fazia bem eu considerar N. uma mulher promíscua. Que eu, a esposa traída de meia idade, me sentiria melhor se ele não refutasse a hipótese de sua amante ser uma puta. Eu afundava, mais e mais, em estereótipos, e Paulo continuava a me ajudar para que assim fosse. Agora, eu era a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha sido traída. E era também a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha a reação típica de todas as mulheres merdas, banais, medíocres, imbecis ao serem traídas: pedir teste de HIV. Porque os maridos dessas mulheres nunca trepam com camisinha, elas não merecem a preocupação.” - trecho de Nada a dizer.
Ter uma narradora que se revela aos poucos para si e para o outro vem do olhar não autoritário da autora perante suas personagens (e perante seus leitores, diga-se).
Gosto em particular do fato de Elvira usar a descoberta da traição para falar sobre um algo mais atrelado à evolução do pensamento político no Brasil. A pergunta “O que isso significa para mim?” permite que a narradora repense as situações em que construiu seus valores morais ao longo da vida. Ao analisar sua relação com o marido desde os primórdios, a narradora de “Nada a dizer” analisa também a história do país por essa ótica de pessoas que viveram o sonho hippie, que lutaram contra a ditadura, lutaram pela liberdade sexual, e que de repente viveram um tempo de tranquilidade e liberdades aparentes em que nossas subjetividades foram sendo cada vez mais capturadas pela lógica capitalista. Desejar perdoar ou não perdoar uma traição diz o que a respeito de nós?
“Nada a dizer” ganhou o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras.
Poder x Desejo
“A narradora é oriunda da década de 60, teve uma formação muito ideológica na juventude, como muitos brasileiros de sua geração, por conta da ditadura militar. É um comentário que ela faria. É um comentário que eu faria. Diz respeito a uma atitude acumulativa, burra porque destruidora (do planeta e do indivíduo, igualmente) a longo prazo. Você quer mais capital e o acumula enquanto pode porque pode, não porque queira exatamente, ou porque precise. Mais um carro, mais uma casa de veraneio, mais um avião. Ou mais uma buceta”. - Elvira Vigna sobre Nada a dizer.
Por escrito
“Tirando o mundo real, o resto continuava direitinho. E nos avisavam o que ia acontecer à frente, e tudo o que não tinha sido avisado estava proibido de acontecer. Tirando o mundo real, o acaso, a gravidez de adolescentes, a chegada inesperada de quem viaja, a queda em janelas ou a mudança climática anunciando que todos os cafezais do mundo inteiro estão indo para o brejo, não são permitidos imprevistos de nenhum outro tipo nesse caminho que, resolutos, seguimos.” - trecho de Por escrito.
“Por escrito” é um livro simples e complicado. Algumas resenhas e artigos parecem abordá-lo com certo tato, cuidado, como se desmistificá-lo fosse tirar seu valor. Nada a ver. Indo pelo simples? Valderez é alguém que viaja bastante a trabalho. No seu dia a dia, gosta de deixar tudo anotado, mesmo que em notas mentais, como se esse processo de anotar ajudasse a ancorar a vida no real. Em “Nada a dizer” diziam que a protagonista acreditava num amor que não estava lá. Valderez faz o inverso. Ela tem dificuldade de trazer para a concretude o que existe, mesmo sendo uma pessoa que gosta de ficar sentada por aí em bancos, cafés, aeroportos, observando a vida. E aqui falo sobre o amor, mas falo também sobre essa realidade cada vez mais imaterial que nos envolve, essa sensação de vagar no limbo. Algo que “Por escrito”, dez anos atrás, já conseguia apontar.
Valderez escreve o livro para Paulo, seu interlocutor. O homem de quem foi amante, de quem gosta, e que agora pode ficar com ela. Seu relato sobre a vida cotidiana, esse conjunto de reflexões, é não linear, um quebra-cabeça que não tem como objetivo ser montado. Tal escolha narrativa cria um jogo do real que está presente em todos os aspectos do livro. “Será que é mesmo?” O exemplo mais material dessa questão é uma cena de queda. Valderez está passando por uma janela e vê algo caindo. É tudo muito rápido. Esse algo, ela pensa, foi um colchão. Mais tarde descobre que pode ter sido outra coisa.
Elvira, ao apresentar o livro, comentou a respeito dessa questão que conduz cada escolha estética e narrativa do livro. Resgato aqui suas palavras:
“Eu tinha uma amiga que morava no prédio ao lado do meu, em uma Copacabana ainda amena, que permitia que menininhas de sete anos fossem sozinhas brincar uma no prédio da outra, e voltar. Eu voltava. Pela escada. Aí, pelo vidros sujos dessa escada, vi passar o que me pareceu ser um colchão, com lençóis esvoaçantes. Não falei nada para ninguém. Não quis constranger minha amiga que, pelo visto, morava num edifício em que as pessoas jogavam de um tudo pela janela, inclusive colchão. Depois de um tempo que não sei dizer quanto foi, ouvi minha mãe comentar o caso da noiva que havia se jogado num edifício ali da rua. (…) O que me ficou não foi a tragédia que eu talvez tenha testemunhado. E digo talvez porque nada me garante que eu não tenha de fato visto um colchão. E uma noiva tenha se jogado em um outro dia de um outro edifício. O que me ficou na memória, e o que eu iria lembrar muitos anos depois, foi essa sensação incômoda de viver coisas que não estão acontecendo. Tanto eu posso ter vivido o testemunhar de uma tragédia, uma noiva que se joga. Como posso perfeitamente ter vivido o contrário disso. Achar que vi uma tragédia quando vi um colchão. Então é isso o livro. É esse incômodo de você às vezes perceber que está vivendo algo que não está lá. Que a tua vida pode não ser o que você acha que é.” - Elvira Vigna apresenta “Por escrito”.
Gosto de brincar (uma brincadeira séria) que “Por escrito” tem um parentesco com “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick. Construído no é e não é, nas recusas e nos não-lugares, inclusive temporais.
“De antemão, decido. Vou tentar botar isso aqui no passado, com os verbos no passado. Não sei se vou conseguir. Já tentei antes, mas não consigo deixar essas coisas no passado, aliás nem sei se existe isso, o passado. Acho mesmo que é como se eu estivesse num espaço assim, meio sem contorno marcado, em que as coisas entram e saem, em que os tempos convivem. Molly dança com um cara grande e quando ela dança, ela também, ao sentir a pressão do pau dele contra seu corpo, haverá de lembrar de outro pau, mais fino, mais ardido, ela também presa, dessa vez não pelas mãos grandes que a enlaçam.” - trecho de Por escrito.
Um detalhe sutil que vale comentar. Elvira escrevia livros curtos, sempre. “Por escrito” é a exceção. Justamente porque conta a história de uma pessoa que, enquanto vai de um lado para o outro, enquanto se promete estar fazendo sua última viagem a trabalho e supostamente conta de tudo um pouco sobre sua vida, está na verdade adiando o momento de tomar a grande decisão: ficar ou não ficar com o cara com quem se relacionou?
“Por escrito” ganhou o 2º lugar do prêmio Oceanos.
Como se estivéssemos em palimpsestos de putas
“Sobre o que falam os livros. Mentem. Dizem que são uma coisa, e dependendo de como se lê, de quem lê, são outra.” - trecho de Como se estivéssemos em palimpsestos de putas.
Chegamos ao final dessa edição com o romance final da Elvira. Como se estivéssemos em palimpsestos de putas é, como diz o título, um palimpsesto. Escrita sobre escrita. João, um cara rico e cheio de si, conta para uma amiga com quem trabalha suas aventuras com inúmeras putas. Na cabeça dele, seu estilo de vida o torna um baita transgressor. As putas para ele são sempre iguais, porque pra ele tanto faz a mulher, já que é ele o protagonista das suas transas. Conta pouco, e o que conta é desinteressante para a amiga, a quem julga ser lésbica, por isso não dá em cima dela. Essa amiga, esperta que só, no seu jogo difuso, dissimulado, vai assumindo o controle da narrativa e completando as lacunas das histórias. Narrar é também inventar (nunca sabemos em que medida) a vida das putas, sua própria vida, a vida do homem com quem se encontra, a vida da esposa de quem o homem pouco comenta. São muitos os personagens que passam por esse palimpsesto, um dando lugar ao próximo numa versão mais firme, menos rascunhada, a cada vez que a narradora repassa na cabeça aquelas histórias. Com isso dezenas de personagens e historietas vão sendo costuradas para falar de algo maior. Narrar é, para Elvira e para a narradora, um processo de humanização daquilo que nos cerca. Algo que precisamos recuperar urgentemente nesse momento em que a realidade se esfacela e o outro se tornou apenas um artifício de construção do nosso próprio ego. As putas, a esposa, a narradora e até o próprio João são, no fim das contas, pessoas. O texto da Elvira é bem marcante nesse sentido.
A ideia de repetição na narrativa é usada também na estrutura do texto, construído em blocos, uma decisão tomada para se criar um ritmo específico. Segundo Elvira, uma brincadeira com a Epopeia e com a ideia de “grandes feitos” de um homem.
“João desce a Augusta de um jeito. Volta de outro. Isso sempre. Desde o começo. Desde Lorean. Vai como quem vai para o necessário, o ar necessário, para aquilo sem o qual ele não vive. E volta cabisbaixo, insatisfeito, nunca acontecendo o que imaginou que ia acontecer, nunca sendo tudo tanto e por tanto tempo quanto gostaria. E aí, aos poucos, a ida e a volta começam a ficar parecidos.” - trecho de Putas (apelido carinhoso do livro).
“Putas” ganhou o prêmio de melhor romance da APCA, Associação Paulista de Críticos de Arte. Considerado a grande obra da Elvira, é um dos meus favoritos por conta dos seus personagens tão reais e por um humorzinho muito peculiar que costumava ser mais contido nos romances anteriores.
Pra fechar
Sempre me pergunto o que Elvira teria a dizer sobre o Brasil que passou a existir depois da sua morte, um com extrema direita histriônica e destrutiva, com pandemia e negacionismo científico, paranoia antivacina, colapso ambiental movido por agroespertalhões e com tech bilionários que parecem vilões de James Bond. Totalmente entregue à espetacularização.
Me vem em mente um vídeo dela de 2011 em que se põe a favor do banal e contra esse movimento. Dizia, em palavras mais sofisticadas que a minha, que a espetacularização cria um distanciamento dos temas que finge trabalhar e tal distanciamento afeta a análise crítica, pois narrativas espetacularizadas se interessam apenas em entregar caminhos já trilhados e respostas pré-formatadas em vez de construir possibilidades.
“O narrador espetacularizado apresenta sua história de forma já enquadrada em uma explicação prévia, contando com um acervo de conhecimentos rasos, sem possibilidade de renovação. A representação de mundo oferecida pela espetacularização é fechada, já explicada e assimilada. O leitor “vê” o que já havia visto antes. Se, em uma narrativa espetacularizada, todos sabem o script de antemão e o aguardam seguros de sua posição confortável, na narrativa que procuro delinear aqui, há perdições, desvios, não se oferecem guias confiáveis. O narrador de minha predileção avisa que a única coisa que há a oferecer é uma relação em andamento.” - Recortes meus da fala de Elvira de 2011 para o site “Estudos lusófonos” da Sorbone IV, a pedido de Leonardo Tonus (recomendo o texto completo).
Como dito pela autora repetidas vezes, Elvira construía seus livros a partir de histórias reais: vividas, ouvidas ou presenciadas. Eram essas as peças da sua literatura. Calhou de em três livros seguidos, bem diferentes entre si, esse quebra-cabeça de realidades ter um elemento de traição. Algo próximo da literatura de crime, mas com a investigação voltada para o nosso mundo interior. Enquanto conhecemos suas vidas, seus pensamentos, seus entornos, aprendemos mais sobre eles e sobre nós mesmos.
“O unheimlich é uma coisa que busco na vida e nos livros. As coisas têm de estar vivas, ou seja, incômodas. Preciso estranhar o que conheço bem. É uma espécie de respeito. Preciso, para escrever sobre qualquer coisa, respeitar um intervalo entre minha abusiva, comodista e preguiçosa pessoa que acha que tudo sabe, e esse outro – a pessoa, cena ou lugar sobre o qual escrevo”.
- Elvira Vigna na palestra “O vão entre o trem e a plataforma”, de 2016.
Elvira Vigna na Amazon.
Lá você encontra os romances, parte dos infantis, o quadrinho juvenil “Vitória Valentina, e os póstumos: “Kafkianas”, o juvenil inspirado em Kafka, e “Uma história da arte”, escrito em conjunto com Carolina Vigna, filha dela e também crítica de arte, entre outras coisas.
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Um abraço e até a próxima,
Eric Novello
Maravilhos Elvira! Saudades imensas!
tô lendo Putas e amando!
obrigada por essa apresentação tão linda da Elvira :)