Censura a livros e a arte como resistência
Uma edição sobre tentativas de censura e o poder da arte
A Encruza Criativa Ano 2 #09 comenta os casos recentes de censura a livros e a músicos no Brasil e traz exemplos de enfrentamento através da arte.
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“Onde se queimam livros, cedo ou tarde acaba-se queimando pessoas” - Heinrich Heine.
Livros censurados
Livros, esses objetos perigosíssimos.
Se você não acompanha o mundo literário de perto talvez não saiba do embate livros vs censura que tem ocorrido desde sempre recentemente.
Li na reportagem do Jornal Nexo que a entrada de livros de conteúdo literário em unidades de detenção de Minas Gerais andava proibida por eles serem “potencialmente libertadores e passíveis de despertar a consciência do preso”. Os únicos livros permitidos eram: a Bíblia (que surpresa) e títulos de autoajuda. Eles falam “livros religiosos”, mas eu ficaria surpreso de ver livros de religiões afro-brasileiras liberados para leitura nesse cenário.
“O avesso da pele”, romance do autor Jeferson Tenório, vem sofrendo uma ação pesada de boicote. A reclamação começou numa escola do município de Santa Cruz do Sul e escalou para estados como Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná pedindo o recolhimento dos livros nas escolas públicas. O argumento é que ele contém “palavras de baixo calão”. O livro, fácil fácil um dos melhores da recente safra da literatura brasileira”, tem como eixo o racismo e trata da violência policial contra pessoas negras.
Já o vexame do prêmio SESC de literatura aconteceu por outro motivo. Incomodada com o conteúdo do último vencedor na categoria romance, a diretoria do SESC estaria pensando em criar um comitê interno para avaliar os livros escolhidos pelos jurados. Obviamente usando critérios extraliterários. “Outono de carne estranha”, de Airton Souza, fala da paixão entre dois garimpeiros. Ou seja, "cuidado, contém gays”. A editora Record, parceira do SESC que publica os vencedores, caiu em cima pedindo maiores explicações.
Como o cidadão de bem não causa estrago só na literatura… O cantor Johnny Hooker, convidado para se apresentar em Niterói num evento que valoriza a diversidade sexual, de gênero e de raça no Brasil através da arte, teve seu show cancelado após uma ação coordenada de extremistas religiosos e políticos bolsonaristas. Dois grupos que, não por acaso, costumam caminhar juntos.
O embate cultura vs grupos autoritários não é novo. E a reorganização do fascismo brasileiro desde 2017, espelhando o movimento que acontece nos EUA, Argentina e em outros países, deve manter essa relação tensa ainda por um bom tempo.
Não por acaso, meu romance Ninguém Nasce Herói começa com os personagens distribuindo livros proibidos pelo governo para peitar o presidente fundamentalista que subiu ao poder.
Mas bora animar…
O Partenon de Livros Proibidos
O Partenon de Livros Proibidos é uma obra da artista argentina Marta Minujín. Uma réplica da Acrópole de Atenas feita com centenas de títulos que foram censurados ao redor do mundo e, nessa montagem atual, conseguidos através de doações com a colaboração de estudantes. Envolver estudantes na sua “construção” foi um gesto simbólico para firmar um contraponto às queimas de livros ocorridas durante o regime nazista. Para refrescar a memória, na ocasião a queima contou com milhares de estudantes alienados pelo discurso nazista, todos marchando orgulhosos por retirar os livros das universidades para queimá-los em praça pública.
El Partenón de libros ganhou vida pela primeira vez 1983, na Avenida 9 de Julho, em Buenos Aires. Em suas colunas, livros proibidos pela ditadura militar argentina. Na lista dos autores censurados: Sigmund Freud, Karl Marx, Jean-Paul Sartre, Ernesto Sábato, Antonio Gramsci, Hemingway, Jorge Luis Borges e até Antoine de Saint-Exupéry e seu “O Pequeno Príncipe”. Para situar, a ditadura argentina caiu em 1983, a do Brasil em 1985. Depois de cinco dias, a instalação da artista foi desmontada e o público pôde levar os livros para casa.
“A censura, a perseguição dos escritores e a proibição de seus textos motivadas por interesses políticos e por tentativas de influenciar nossos pensamentos, nossas ideias e nossos corpos, estão se espalhando mais uma vez. O Partenon de Livros é um símbolo de oposição à proibição de escritos e à perseguição de seus autores” - Marta Minujín.
Em 2017, época da foto e da declaração acima, ele foi exposto no Documenta, um dos eventos de arte contemporânea mais importantes do mundo. Desde 1955 ele acontece a cada 5 anos em Kassel, na Alemanha. A exposição nasceu com o objetivo de modernizar o pensamento alemão e varrer de vez o obscurantismo deixado pelo nazismo. Não por acaso o pensamento conservador fascista julga a arte uma ameaça a seus projetos de controle.
Ru Paul vs censura estadunidense
Drag Race, programa criado por Ru Paul e que hoje conta com versões no mundo inteiro, se tornou um fenômeno cultural e jogou novo holofote sobre a potência política da cena queer, mais especificamente, das drag queens que se tornaram porta-vozes de um movimento maior. Por conta disso, drags têm sofrido perseguição de grupos conservadores nos Estados Unidos, que tentam banir seus shows e proibir o contato de drags com crianças, entre outras escrotices típicas do conservadorismo.
Essa semana Ru Paul anunciou a Allstora, uma livraria online que enviará seu ônibus arco-íris pelos EUA para distribuir livros que são alvos dos ataques dos conversadores estadunidenses. Banir livros de escolas e bibliotecas na “terra dos defensores da democracia” é como matar a tiros animais indefesos para exibir suas carcaças no Instagram, esporte nacional. A pressão chega a ponto de existir ameaça de bomba e fechamento forçado. Daí a importância de ações como a de Ru Paul ao lado dos sócios Eric Cervini e Adam Powell.
A livraria também dará maior visibilidade a autores sem muita projeção e pagará uma percentagem maior sobre as vendas dos livros em comparação com outras lojas similares.
Não é preciso dizer que grande parte desses livros são de autores LGBTQI+ e de autores racializados.
“A história mostra que quanto mais as pessoas tentam restringir o acesso a algo, mais as pessoas são atraídas por isso. É impossível reprimir a imaginação” - Ru Paul.
Arte é resistência. Literatura é resistência.
Quem passa pano pro status quo não é arte, é propaganda.
Para quem vive à margem do projeto de poder conservador, é diária a luta pelo direito de existir e se expressar livremente.
Se indignar é o primeiro passo.
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello
(easter egg: quase coloquei como título “o cidadão de bem é um arrombado”, mas respirei fundo antes de enviar).
O cidadão de bem, de fato, é um arrombado.
A história pendular e nosso vai e vem, ora em direção ao progresso, ora regredindo.
Sigamos se indignando e resistindo.