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Um autor e seus labirintos
Ando trabalhando firme nos meus projetos literários vindouros. Dois romances que não sei como classificar, mas que possuem elementos insólitos. Já fui o nerd dos “gêneros literários”, fascinado com o tanto de classificações nas prateleiras das livrarias estadunidenses. Fantasia urbana, romance paranormal, steampunk, romance histórico, terror, terror psicológico… Mas isso ficou para trás em algum momento. Então, quando paro para pensar no que escrevo, a resposta que me vem a cabeça é: histórias estranhas. Gosto do estranho, do incômodo, gosto do queer, daqueles livros que fogem de se explicar totalmente. Detesto ter que sair dos meus armários. Gosto de autores que reconhecem a importância do inconsciente e da subjetividade, que trabalham na esfera do desejo. Aliás, numa época em que livros, filmes, séries, são analisados à exaustão nas redes sociais (geralmente sem grande variação de pensamento), o mistério se torna cada vez mais valioso. Pelo menos para mim.
A estratégia de tocar dois livros ao mesmo tempo me veio para fugir dos momentos de dúvida. Em vez de me afastar da rotina da escrita, eu simplesmente mudava de um projeto para o outro, desanuviava a cabeça. No meio do caminho, o romance que chamo de “RDA” começou a ganhar vantagem e foi ficando cada vez mais na dianteira. Estou na metade dele agora.
Metade de um romance. Para quem pensou algumas vezes em parar de escrever depois de publicar o “Ninguém Nasce Herói”, a metade de um romance tem me parecido um feito e tanto.
Okay, parar de escrever é um exagero. Depois do “NNH” escrevi alguns contos e noveletas que ficaram aqui no meu notebook, quietinhos. A publicação de contos não é muito atraente para editoras. E a publicação de forma independente, hoje, me parece ser na verdade dependente da Amazon. Gosto muito de contos como leitor, tenho gostado de escrevê-los (estou com vários pela metade, só no aguardo), e um dia vou descobrir minha maneira de colocá-los no mundo.
Poderia ir publicando um de cada vez. Talvez em partes aqui no Substack. Mas aí me vem a vaidade de pensar na possibilidade de inscrevê-los em prêmios literários. Oito, dez contos dão um livro bacana que pode concorrer a prêmios. Soltos na Amazon ou por aqui funcionariam mais para aplacar minha ansiedade. Estou pensando alto com vocês, sem muitas certezas. Não sou religioso e, de maneira geral, evito ser dogmático sobre qualquer assunto.
Então, depois de um tempo na prosa curta, dois romances. Duas novas possibilidades de voltar ao mercado editorial. Preciso de mais uma metade de “RDA” para decidir se ele está pronto ou não. Certas coisas só são perceptíveis durante o processo. É durante a escrita que a magia ocorre, não importa o quanto de planejamento você tenha feito.
Um exemplo: quando estava em 30% do “RDA” percebi que minha escolha de narrar a história em terceira pessoa tinha sido equivocada. O protagonista e os mistérios da cidade que ele visita pediam o uso de primeira pessoa. A mudança deu outra vida ao livro. Impactou inclusive minha maneira de construir a ambientação.
Escrever é praticar e eu gosto dos meus processos, inclusive de explorar os caminhos espinhosos.
A essa altura do livro, os temas mais fortes de RDA já se revelaram para mim. Um deles, percebi essa semana, é a relação do protagonista com a loucura. Olha que coisa incrível é esse nosso diálogo com a mente consciente e inconsciente que se dá na feitura da arte. O tema estava lá desde a epígrafe e levei 40 mil palavras para me conscientizar do óbvio.
Tem mais. Mas a gente fala a respeito numa próxima oportunidade.
Poesia: Uma flor no buraco da calçada
Quando soltaram os cachorros loucos eu estava fazendo chá de ervas do campo e de repente o espanto tremendo a chaleira e bombeando medo larguei as ervas e danado precipitei-me à janela de onde vi enormes matilhas com olhos cheios de negra espuma a espuma invadia a rua e abraçava postes, que caíam cheios de óleo e náusea engolia as pessoas que alucinadas enchiam o ar de berros depois os cachorros foram embora eu voltei ao meu chá e lá fora a solidão e uma flor quase despercebida
Conheci “Uma flor no buraco da calçada”, poema de Henrique do Valle, na epígrafe do livro “Triângulo das Águas”, de Caio Fernando Abreu. A leitura me fez pensar nos cachorros loucos que entraram correndo pelas portas das nossas casas, que invadiram as ruas, padarias, academias, redes sociais, ambientes de trabalho, encontros de família, gritando agora é nossa vez, e que seguem rondando nossas canelas embora tenham sido afastados com muito esforço na eleição de 2022. (Tem cachorro louco que devia estar preso e está aí viajando o país fazendo campanha. Enfim).
Triângulo das Águas é um livro dividido em três histórias tendo a água como fio condutor. Na primeira delas o poema escorre para dentro da ficção e um grupo de amigos se vê preso dentro de uma casa porque os cachorros loucos estão soltos do lado de fora. É uma espécie de O Anjo Exterminador, mas com todo mundo se pegando e lavando roupa suja. O livro é bem doido num geral, uma mistura de fluxo de pensamento, lirismo e psicodelia que pede uma releitura para ser devidamente apreciado. Gostei muito da primeira história e da terceira, já a segunda me cansou. Num momento em que Caio F. buscava certo tipo de validação, Triângulo das Águas rendeu a ele seu primeiro jabuti. Isso em 1984.
Por ignorância, pensei que o poema pudesse ser do próprio Caio F., assinado num pseudônimo para brincar com a quebra do espaço ficcional. Mas não.
Sobrinho do presidente João Goulart, Henrique do Valle foi um poeta que descobriu ainda criança a violência da ditadura. Viu seus pais serem levados pelos militares quando estava no sítio do tio e acabou indo com a família para o exílio. O trauma, parece, o marcou profundamente. Com crises de esquizofrenia severas, foi internado várias vezes e levou a vida na corda bamba. Morreu aos 22 anos, em 1981, pouco depois de deixar com um amigo uma coleção de 30 poemas.
Nas cartas publicadas de Caio Fernando Abreu há um trecho sobre o poeta:
“Tenho transado com o Henrique do Valle. Ele é incrível, incrível mesmo, mas numa ruim. Não é exagero, NUNCA vi ninguém mais drogado, não consegue ficar em pé, quem o ampara é a namorada, que se chama — juro — Misericórdia. Ele é muito, muito, muito bom. E dói olhar pra ele, porque está se matando e sabe disso”.
Já teorizaram a morte de Henrique do Valle como overdose acidental, suicídio… A família afirma que foi em decorrência das fortes alergias que o poeta possuía desde criança. Seja qual for a resposta, partiu cedo.
Um livro reunindo sua obra completa, com organização de Paulo Seben, foi publicado em 2014 pela editora Corag / Instituto Estadual do Livro. Além dos 30 poemas constam nele o material de quatro publicações anteriores.
Assim que conheci a poesia marginal de Henrique do Valle quis trazê-la para cá. Com o passar dos meses, enquanto planejava a edição, fui percebendo que meu encanto não se dava somente pela poesia em si, mas também por essa ideia de elo contínuo da arte. De um livro que nos puxa para outro livro. De um filme que nos leva a conhecer uma nova música. De uma epígrafe de Caio Fernando Abreu que nos leva a descobrir um poeta.
Newsletters têm sido parte importante desse trançado cultural. Você que escreve, mantenha isso em mente quando bater aquela dúvida chata sobre si.
Para encerrar a edição de hoje, deixo dois trechos de Triângulos das Águas com vocês. Ambos falam das dinâmicas da cidade grande.
“As cidades grandes como esta têm dessas coisas — você não precisa simular interesse algum pelas pessoas em volta, elas não exigem mais que um bom-dia, boa-tarde, boa-noite, às vezes nem isso, silêncio nas horas em que se costuma fazer silêncio, ruído nas horas em que usualmente se faz ruído. (…)
As ruas vão mudando, os edifícios vão sendo destruídos. Mas continuam inteiros dentro de você. Chega um tempo, eu acho, que você vai olhar em volta sem conseguir reconhecer nada.”
Década de 1980. Mas podia ser de hoje.
Quer dizer, se a cidade ainda soubesse fazer silêncio na hora do silêncio.
Holiday, Celebrate
Antes de fechar a conta: A ENCRUZA está chegando a 2500 leitores. Obrigado por fazer parte disso.
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Um abraço e até a próxima,
Eric Novello
Eu também me vejo escrevendo coisas estranhas e não particularmente em nenhum gênero. Até me batia uma dúvida se estava viajando ao escrever assim, sem linhas firmes, com as coisas surgindo no meio do caminho de um livro: faroeste medieval, investigação em mundo fantástico, sempre flertando com Terror...
Mas me apresentaram China Miéville e o New Weird (contém livros estranhíssimos) e rolou uma identificação pra mim. Escrevendo esse comentário me dei conta de que preciso falar disso na próxima edição da minha news
admiro sua capacidade de escrever dois romances ao mesmo tempo. mal consigo lidar com um texto único por vez. 😅