Gran Fury: um coletivo de arte contra o HIV
Uma edição com o coletivo Gran Fury e um encontro entre Cher e David Lynch
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Mudando para continuar o mesmo
Oi! Se você é das antigas vai notar que a a newsletter perdeu o sobrenome e deixou de se chamar “Encruza Criativa”, uma ideia vinda da minha intenção inicial de falar sobre narrativas e bastidores de escrita. Contudo, com o passar das edições a newsletter foi ganhando um corpo próprio de assuntos que vai além da literatura. Por isso resolvi oficializar de vez esse ajuste que já vinha acontecendo. A identidade visual também recebeu uma lustrada. Está mais simples, mais personalizada e mais vermelha, se é que você me entende. O carinha ali em cima é o Marafo, boneco de pano que aparece nos meus livros “Neon Azul” e “Exorcismos, amores e uma dose de blues”, um dos meus mascotes sobrenaturais.
A partir de hoje a Encruza está diferente, mas segue a mesma. Porque não faria sentido pisar numa encruzilhada sem dobrar a lógica do mundo. A descrição também mudou e está mais direta ao ponto: pensando o mundo através da arte. E, sim, arte é política e não se fala mais nisso.
Para quem acabou de chegar e para quem me acompanha faz tempo, bora caminhar pela Encruza.
O coletivo Gran Fury
“Você se ressente de pessoas com aids? Você confia em pessoas HIV negativas? Você perdeu a esperança de uma cura? Quando foi a última vez que você chorou?” Esse é o conteúdo de Four Questions (Quatro perguntas), um dos cartazes criados pelo Gran Fury.
Nascido do ACT UP, (AIDS Coalition do Unleash Power), o Gran Fury foi um coletivo de artistas atuante nas décadas de 1980 e 1990 que produzia campanhas gráficas e intervenções públicas para criticar o silêncio e a negligência do governo dos Estados Unidos em relação à epidemia de AIDS.
Já vi alguns textos os referenciando como AGITPROP Art: propaganda política através da agitação para mobilizar a opinião pública / promulgação intencional e vigorosa de ideias. Um termo nascido na antiga União Soviética.
As quatro perguntas foram o jeito do grupo lidar com a frustração que seus integrantes sentiam por se verem incapazes de articular de maneira concisa a complexidade do problema para o qual tentavam chamar atenção: as comunidades gay, negra e hispânica estavam sendo dizimadas pelo vírus e o governo do conservador Ronald Reagan não fazia nada para ajudar. Pelo contrário. Na década de 1990 o que se viu foram grupos conservadores mascarando números e pondo panos quentes na epidemia por gostarem do cenário de mortandade. Junto à mentalidade do “fez por merecer” havia certo sentimento de vitória por parte dos conservadores. Ira de Deus matando essa gente “promíscua” e esse papo todo.
Falando nisso, um dos trabalhos mais famosos do Gran Fury, que causou um tremendo rebuliço, colocava uma imagem do papa exposta ao lado de uma rola em pé dessas difíceis de ignorar. O objetivo era chamar atenção para a postura da igreja diante da epidemia. Para quem não sabe a Igreja Católica fez uma forte campanha contra o uso de camisinha sob o comando do papa João Paulo II, aquele do “se Deus é brasileiro, o papa é carioca”.
Aqui no Brasil a CNBB criticou duramente o Ministério da Saúde e interferiu no conteúdo das campanhas. “Deve-se incentivar o fim da promiscuidade e não o uso de camisinha”, era o argumento. O Jornal do Brasil fez algumas alterações, mas manteve a veiculação das campanhas. Simbólicas não apenas por serem informativas, mas por não condenarem o prazer sexual.
Alguns pontos altos do Gran Fury:
Chamou atenção para o fato de que a população prisional com HIV tinha e metade da expectativa de vida de quem era tratado do lado de fora.
Apontou o dedo para a indústria farmacêutica que ainda considerava o “mercado do HIV” pouco lucrativo em relação a outras doenças.
Mostrou que considerar a AIDS uma doença apenas de gays, além do viés discriminatório, era uma malícia dupla, pois colocava na invisibilidade as famílias heterossexuais negras e latinas estadunidenses que estavam sendo afetadas pelo vírus.
Fez campanha para o uso de preservativos para tentar circular informações que a mídia não se dava ao trabalho de circular.
Quando figurões da política mundial apareciam segurando no colo bebês soropositivos de pele escura em supostas ações contra o preconceito, o Gran Fury perguntava: Essas crianças têm mães? Por que não estamos falando delas também?
Em 2024 dá para dizer que a situação mudou para melhor. O HIV pode ser controlado com uso de medicamentos, é possível tomar medicamentos preventivos que impedem o contágio (PrEP - Profilaxia pré exposição ao vírus HIV) e algumas pesquisas se aproximam de uma cura definitiva. Entretanto, o preconceito geral e a atuação desonesta dos conservadores pela desinformação permanece. Aliás, mesmo num governo que consideramos progressista devemos nos perguntar por onde andam as campanhas de conscientização. Lembrando que nosso país ainda é bastante desigual.
No mundo, segundo dados recentes, perto de 40 milhões de pessoas das mais variadas idades vivem com o vírus HIV. 68% dos casos estão na África Subsaariana. Estima-se que mais de 40 milhões de pessoas tenham morrido desde o início da pandemia. Ou seja, 40 milhões em 40 anos. O Brasil tem 1 milhão de pessoas vivendo com o vírus, 770 mil estão em tratamento. De 2020 para 2022 o número de casos aumentou 17,2% na média nacional. A percentagem varia consideravelmente de estado para estado.
O coletivo Gran Fury encerrou suas atividades em 1995 com a peça “Good Luck… Miss You, Gran Fury”. Para quem quiser conhecer mais a respeito do trabalho deles, até dia 09/06/2024 o MASP exibe a exposição Gran Fury: Arte não é o bastante.
Um diálogo entre Cher e David Lynch
Meu atual vídeo favorito no Youtube é essa conversa entre David Lynch e Cher, que nunca aconteceu. Isso porque ele acaba sendo um exemplo do unheimlich tão presente na obra do Lynch. Dá para pensar o conceito de “unheimlich” como algo que causa horror e/ou inquietação, mas que ao mesmo tempo transmite certa familiaridade. Quanto mais sutil a fronteira entre os dois, maior o impacto causado. Aliás, não por acaso o Lynch é alguém que também gosta de duplos e de espaços liminares. No fundo, todos os elementos se comunicam.
Diz-se que é difícil replicar a essência “lynchiana”, mas pra mim esse vídeo acerta na mosca.
The Pope and The Penis
“A Igreja Católica há muito ensina homens e mulheres a abominar seus corpos e temer sua natureza sexual. Essa visão particular de bem e mal continua a trazer sofrimento e até mesmo morte. Ao manter a medicina refém da moralidade católica e não divulgar informações que permitam às pessoas proteger a si mesmas e umas às outras e com isso evitar contrair o vírus causador de imunodeficiência em humanos, a igreja tem como objetivo punir todos aqueles que não compartilham da sua versão peculiar da experiência humana e evidencia sua preferência por um mundo de santos vivos e pecadores mortos. É imoral praticar a medicina dessa maneira e negar às pessoas informação que possa ajudar a acabar com a crise da AIDS. Camisinhas e agulhas descartáveis salvam vidas, uma constatação tão verdadeira quanto o fato de que a terra gira em torno do sol. A AIDS é causada por um vírus e um vírus não tem valores morais.” - Gran Fury na instalação “The Pope and The Penis”
No Brasil, por volta de 2010, a Igreja Católica mudou seu posicionamento e passou a atuar em campanhas informativas, estimulando a realização de exames. Não sei como anda o discurso depois do arrastão conservador que aconteceu de 2016 para cá, nem o posicionamento das diferentes igrejas evangélicas em relação ao tema. Exorcismos picaretas à parte.
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Um abraço e até a próxima,
Eric Novello
easter egg: Para quem chegou até o final, a outra parte da equação The Pope and The Penis na revista Frieze.
Texto ótimo! Esse ano deve sair no Brasil o livro “The Great Believers”, livro elogiadíssimo lá fora sobre essa temática. Fica de olho!
Abraços 🤗
Ótima matéria! O Livro "Tipo Uma História de Amor" nos dá um retrato do HIV na década 1980 e da ação da ACT UP!, para quem quiser ler, vale muito!