Encruza Criativa Ano 2 #02
Uma edição com vampiros gays, Madonna, Além da Imaginação and a hell of a lover
A Encruza Criativa agora possui um plano de assinaturas. A newsletter continua com o conteúdo gratuito, mas se você gosta dela, considere apoiá-la por R$12 reais mensais ou R$100 reais anuais. Assinantes pagos têm acesso liberado ao arquivo o ano inteiro.
A arte e o drible na morte
14/10. Madonna estreou sua nova turnê em celebração aos 40 anos de carreira. Em vez das coreografias exaustivas, Madonna explora o lado mais teatral característico de algumas de suas turnês famosas como Blond Ambition e The Girlie Show. Aos 65 anos de idade, com um joelho estropiado, cirurgia no quadril, e depois de passar por uma infecção que a deixou em coma por uma semana e quase a levou antes da hora, ela encontrou um jeito de se economizar sem comprometer a experiência. Assistindo aos dois primeiros shows numa transmissão mambembe fiquei surpreso ao perceber que a celebração da vida também traz a morte como tema constante. Madonna já disse mais de uma vez que reflete sobre o fato de ser uma sobrevivente enquanto muitos amigos e artistas da sua geração já se foram: Prince, Michael Jackson, Basquiat somente alguns deles. Se na turnê do álbum Confessions on a dance floor, depois de sofrer um acidente ao andar a cavalo e quebrar vários ossos do corpo, Madonna projetou nos telões imagens dos seus raios-x enquanto montava dançarinos com crinas, sua Celebration Tour aposta numa reflexão mais emotiva e profunda.
Na música Mother and Father um dos telões exibe uma foto imensa da mãe de Madonna e uma foto da falecida mãe de David Banda, seu filho adotivo. Ambos perderam as mães com a mesma idade. Em Like a Prayer David Banda aparece vestido de Prince, com uma guitarra em mãos enquanto o solo de guitarra gravado por Prince para a música ecoa pela arena. Mais para o final, num teatro de sombras por trás de um telão branco, acontece um encontro da Madonna do passado com seu então amigo Michael Jackson, referência a um elemento usado por ambos em seus shows. Ainda no terço inicial, depois de algumas coreografias, Madonna pega o violão, fala da sua internação e começa um cover acústico de I Will Survive. Ao chegar nos versos “Did you think I'd crumble? Did you think I'd lay down and die?” ela pausa e pergunta ao público “Did you?”
Não fossem poucas as pancadas um dos grandes números do show se dá quando a alegria festiva de Holiday sob um globo espelhado de pista de dança começa a adquirir tons mais soturnos e sons distorcidos e se inicia a canção Live To Tell, uma música sobre aprender lições e perder a inocência. Nela Madonna cruza a arena suspensa num elevador, e fotos de seus amigos mortos na epidemia de AIDS começam a aparecer nos telões. As imagens, imensas, passam então a se dividir em imagens menores conforme a lista de mortos vai aumentando. Passam por lá Keith Haring, Freddy Mercury, Martin Burgoyne (melhor amigo de Madonna, alguém que a ajudou muito no início da carreira), Cookie Mueller, Robert Mapplethorpe, Gabriel Trupin (dançarino da Blond Ambition) e muitos outros. Chega-se a um ponto em que o número de mortos é tamanho que não é mais possível identificar os rostos. Difícil não se emocionar.
Como um adolescente gay nos anos 1990, sei o que era existir com uma sentença de morte pendurada sobre a cabeça. Com gente torcendo efetivamente para que a AIDS varresse de vez os “gays”, essas abominações, do planeta. Nos EUA de Ronald Reagan a epidemia foi abafada o quanto foi possível. Quando não era mais possível negar a quantidade de mortos, Reagan sugeriu a castidade como forma correta de se conter o vírus. Vamos lembrar que a igreja era contra o uso de camisinha. No fundo os conservadores comemoravam que um vírus, de repente, estivesse pondo freios na cultura de revolução sexual que vinha acontecendo desde 1960. Uma movimentação mais séria só começou a acontecer quando se percebeu que prostitutas mulheres também podiam contrair HIV. A conexão entre prostitutas e políticas eu deixo para vocês.
Embora nenhum amigo próximo tenha morrido de AIDS, vi as pessoas sumindo das baladas que eu frequentava, gente de gerações anteriores à minha morrendo de “pneumonia”, artistas virando notas de rodapé nos jornais. De um jeito ou de outro, ainda guardo essas histórias comigo.
The Girlie Show, da Madonna, que passou pelo Brasil em 1993 no Maracanã, foi meu primeiro show. Eu tinha 14 anos de idade. Ao levar amigos para casa para assistirmos ao DVD da apresentação todos ficavam assustados quando Madonna anunciava que cantaria uma música para dois amigos mortos pela AIDS (uma referência a essa música é feita antes de Live To Tell). Em seu discurso ela dizia: “embora vocês não conheçam meus amigos, todos aqui conhecem ou conhecerão alguém que sofre com AIDS, a grande tragédia do século XX”. Se na época me pareceu uma maldição, hoje entendo que era a visão de uma pessoa consciente do que falava, alguém que foi porta-voz do assunto antes de ter a fama consolidada, quando muitos artistas que mais tarde seriam celebrados como ícones da comunidade queer ainda estavam no armário para se proteger.
26/10. Um deles, Elton John, comentou recentemente em seu Instagram sobre esta parte do show: “Estamos profundamente comovidos com a homenagem sincera de Madonna durante a apresentação de “Live to Tell” na Celebration Tour, homenageando as 40,4 milhões de pessoas que perdemos para a AIDS.
Obrigado, Madonna, por sua defesa e compaixão, e por aumentar a conscientização sobre a missão contínua de se dar fim à AIDS. 39 milhões de pessoas vivem hoje com HIV. 9,4 milhões das quais ainda não recebem o tratamento que salva vidas. Por isso, devemos continuar a usar as nossas vozes e plataformas para garantir que todos tenham a oportunidade de viver vidas plenas e saudáveis.”
No fim das contas, Madonna me soa como alguém com a consciência de que o legado de um artista não está na grana que ele faz, mas nos sentimentos que ele desperta e nos debates que movimenta. Dito isso, obrigado à ciência e ao SUS por permitir que, em 2023, as pessoas possam se medicar gratuitamente, controlar o HIV e continuar a brilhar por aí.
- Fotos via Madonna Literal.
- Vídeo de Live To Tell enquanto o link durar.
- Site das Nações Unidas sobre a AIDS e o HIV.
O Bosque dos Sonâmbulos
Seguindo nosso conto de vida e morte, fui assistir a O Bosque dos Sonâmbulos, uma peça de atmosfera gótica com elementos de fantasia que é puro horror queer. Ela começa com o retorno de Oliver ao velho hotel onde viveu com a família durante a virada da infância para a adolescência. Oliver está escrevendo um relato de suas memórias, mas o que realmente o atrai àquele cenário é a esperança de rever seu irmão mais velho, Thomas, que desapareceu durante a visita de uma trupe misteriosa ao hotel. Na ocasião, Oliver podia jurar que o irmão tinha sido levado por um vampiro. Mas adultos não acreditam em vampiros, não é? Então o que terá realmente acontecido?
Revisitar o passado para lidar com pendências emocionais e desenterrar segredos é uma estratégia narrativa que sempre me atrai. Como fui assistir sem saber muito a respeito para manter o elemento surpresa, ainda tive o bônus de me ver de repente no meio de um musical queer (não só gay, veja bem) cheio de prováveis vampiros.
Por se basear em memórias, a peça usa uma estrutura fragmentada e deixa um bocado de espaço para imaginação. Parte do charme de O Bosque dos Sonâmbulos está justamente aí: em instigar o espectador a juntar as peças. Além do mistério do sumiço de Thomas, um personagem queer vivendo seu despertar sexual e tendo que lidar com um pai militar repressor, conhecemos também a história da mãe dos meninos enfiada nesse casamento perverso e a de um hóspede do hotel, um senhor romântico e sonhador e melhor amigo de Oliver. Três histórias de amor que ajudam a construir um envolvente conto-de-fadas repleto de dança, música, sensualidade, piadinhas e boas atuações.
A última apresentação acontece 2 de novembro em São Paulo. Dia de Finados.
Chegue cedo porque lota.
- O roteiro foi escrito por Matheus Marchetti e expande a história do seu curta-metragem homônimo.
I see you shiver with antici…
Why don't you stay for the night?
Or maybe a bite?
I could show you my favorite obsession!
I've been making a man
With blond hair and a tan
And he's good for relieving my tension!- Sweet Transvestite, da peça Rocky Horror Show.
(música de Richard O’Brie com arranjos de Richard Hartley).
Falar de horror queer no teatro é evocar o fenômeno Rocky Horror Show. A história de um casal perdido na noite que vai parar na mansão do alien vampiresco Dr. Frank-N-Furter, “just a sweet transvestite from transexual Transylvania”. Deixo com vocês uma montagem que abraça a estética kinky, tem coreografias encorpadas e, o mais importante, um Dr. Frank-N-Furter com um peitoral capaz de transformar qualquer Rocky em frango de academia.
É como diz o ditado: A subversão está nos detalhes.
- A entrada triunfal de Dr. Frank-N-Furter.
Um recado Além da Imaginação
E como quem escreve essa newsletter são as sincronicidades de um universo fora de sincronia, eu só vou juntando as peças, trago aqui uma citação que apareceu no Bluesky pelas mãos do JM Trevisan (de Dragão Brasil e Tormenta) quando eu estava prestes a fechar essa edição. É uma fala de Anne Serling, filha de Rod Serling, criador de Além da Imaginação:
“Em outubro de 1959, estreava Além da Imaginação. Como meu pai costumava dizer: o papel do escritor é ameaçar o senso comum. Ele precisa firmar sua posição, ter um ponto de vista. Ele precisa ver as artes como um veículo de crítica social e manter um olho atento nos problemas do seu tempo”.
…pation
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello