Quem somos nós entre uma publicação e outra?
Uma edição sobre autores que não publicam, zumbis brasileiros, Nimona e cogumelos
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Quem somos nós entre uma publicação e outra?
O ano é 2016. Entrego o manuscrito de Ninguém Nasce Herói para a Editora Seguinte. Sei que as etapas de copidesque e revisão levarão algum tempo e já estamos quase no final do ano, época em que as livrarias se voltam para best-sellers com cara de presente de Natal e logo em seguida entram em ritmo de volta às aulas com material escolar. Então decidimos juntos que o livro sairá dali a 1 ano, na Flipop de 2017. Desde então, embora venha escrevendo, testando caminhos, lendo livros para pesquisa, publiquei somente um conto. Muito se fala da pressão das redes sociais sobre artistas e demais usuários para que mantenham uma frequência de criação que alimente as tais redes, ou de como só existimos se produzimos. Tudo foi colocado no balaio de gato capitalista do “conteúdo”. Sem essa produção de conteúdo, por nós, os donos das redes não mantêm suas fortunas na casa dos bilhões. A equação é simples para o lado deles. Mas pensando do nosso lado, mais precisamente na profissão de escritor: No que nos transformamos entre a publicação de um livro e o próximo? Nesse momento em que precisei de muitos rascunhos abandonados para chegar a um rascunho que me agrade, quem sou eu? Um escritor de Schrödinger?
Mentiria se dissesse que não estou doido pra voltar a publicar. Tenho produzido, quer dizer, escrito um monte de histórias legais e estranhas. Minha literatura é uma investigação do estranho como local de pertencimento, uma cutucada na frágil realidade, e eu me desconectei disso por um tempo. Foi preciso parar, descansar, viver a tal da vida, ir trabalhar com games, viajar, deixar de olhar para a expectativa dos outros, do mercado, e voltar a olhar para mim mesmo, para me reconectar. Gosto demais da arte como argamassa do pensamento e das relações interpessoais. Do contato com os leitores. Mas essa coceira gostosa de voltar a publicar não significa que eu me invalide como autor enquanto não publico. Falo do assunto aqui desse lugar de não-desespero porque sei que tal pressão é um debate corrente. Vejo amigos passando por isso o tempo inteiro. Talvez você aí que eu nem conheça esteja passando por algo parecido. Preciso publicar. Preciso publicar. Preciso publicar. Se eu não publicar hoje mesmo eu não existo. Se eu publicar e não for lido por x mil pessoas eu não existo. Se eu publicar, for lido por x mil pessoas mas não for resenhado/compartilhado eu não existo. Se eu publicar, for lido por x mil pessoas, for resenhado pelo meu crítico favorito, mas não concorrer ao prêmio… Respira, diacho.
Tem gente que consegue publicar um livro por ano, um livro a cada dois anos, e consolidar carreira pela frequência. Tem gente que publica em intervalos menos regulares. Monta sua obra de outras maneiras. Tem gente que entende seu projeto autoral já no primeiro livro, tem gente que vai descobrindo pelo caminho. Sabe aquela história de o caminho ser mais importante que a linha de chegada? Algo por aí. E se estiver em dúvida do que você quer para sua vida de escritor, saber o que você não quer pode ser um bom começo.
Os duetos da literatura
Música brasileira proporciona uns encontros memoráveis. Belchior cantando Garoto de Aluguel em dueto com o Zé Ramalho é um deles. Fico feliz só de lembrar que ele existe. Há também uma manutenção da memória através do cover, da versão, que é parte da tradição musical. Aquele ligue os pontos geracional ou que atravessa gêneros e estilos.
Sei que cada arte possui seus jogos, seus códigos, mas me pergunto se não deixamos de aproveitar mais amplamente a brincadeira por não jogar as convenções para o alto com mais frequência. Direitos autorais e partilha de caraminguás à parte, a música se permite um tipo de magia que a literatura, me parece, nos proporciona mais raramente. Questão de lógica intrínseca ao formato dos produtos e aos nossos egos, questão de hábito? Eu, por exemplo, morro de vontade de remixar um dos meus livros. Mas quando falo isso para alguém costumo ver só os olhinhos piscando com cara de ué. Minha resposta costuma ser uma cara de ué parecida.
Sobre parcerias na literatura, enfim peguei para ler Corpos Secos, livro que reúne Samir Machado, Luisa Geisler, Natalia Borges Polesso e Marcelo Ferroni. Um livro de zumbis passado no Brasil e escrito por nomes que não costumam ser associados à literatura de horror, embora o Samir brinque bastante com a literatura de gênero num geral. Estou em 50% e gostei de ver que eles criaram personagens que a gente torce para sobreviver, mas também aqueles que a gente torce para morrer da pior maneira possível. Manter os absurdos (no bom sentido) das histórias de zumbis, mas mover a tensão e o drama para outros lugares causa um efeito interessante também, uma curiosidade gostosa. Sem falar que a epidemia é causada por fungos, com direito a cogumelos brotando na pele das pessoas e cabeças que explodem espalhando esporos. Coisa linda de se ver.
Turvar as águas entre livros “literários” e livros de “entretenimento” foi uma bela sacada e rendeu a Corpos Secos o prêmio Jabuti de 2021 na categoria romance de entretenimento.
Horror Queer e Nimona
A Anna Carolina Ribeiro escreveu para o site Valquírias um texto sobre a animação Nimona, analisando a humanidade e monstruosidade da personagem pelas lentes da identidade queer e do corpo que se transforma de dentro para fora e de fora para dentro. Na parte que analisa quem são os verdadeiros monstros da história ela cita um trechinho do meu texto “Os 10 mandamentos do horror queer”.
Fica a recomendação de leitura: A humanidade e monstruosidade de Nimona.
E meu agradecimento à Anna pela citação. Esse debate sobre horror queer me é muito caro porque nasce do meu incômodo com certa higienização mercadológica das histórias queer para que fiquem mais palatáveis ao puritanismo do momento e com certa representação atenta às normas anticancelamento, mas muitas vezes plástica e vazia de empatia na sua origem. Além de ser um assunto diretamente relacionado com minha infância, aquele momento em que um Eric miniatura se entendendo como queer via nos monstros dos filmes de horror seus protetores contra uma realidade homofóbica que tentava excluí-lo de maneira agressiva.
Pra não dizer que não falei de fungos
Mais um registro dos fungos que encontro ao redor da Avenida Paulista. Esses habitam há anos essa árvore. Quando secos ficam pretos, parecem sujeira. Quando hidratados reinam assim. É mágico que os responsáveis por parques e jardins da prefeitura e os moradores do prédio mais próximo tenham, de maneira consciente ou não, permitido que a colônia seguisse seu ciclo de vida. São Paulo é uma cidade onde a construção civil que banca os políticos canibaliza concreto e devora a natureza. Cada registro desses é, pra mim, motivo de comemoração.
Se curtir a edição considere deixar um comentário e compartilhar com os amigos. Ah, e feliz Halloween, Día de los muertos e Dia de Finados.
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello
Eu acho essa questão do "eu só existo se criar conteúdo" devastadora. Queria ter uma solução pra ela, mas acho que no momento é só ficar feliz que nós estamos nos perguntando, não?
Fiquei envergonhado de nunca ter comentado então aí vai: essa pressão da frequência é devastadora. É duro ouvir que, nas redes sociais, "se você não publica com frequência, você não é relevante". Enfim, foi ótimo se identificar com o seu desabafo. E, por mais que eu seja a primeira pessoa a torcer por ver logo seu próximo livro, espero que você faça isso no seu tempo.
Continua com a Newsletter e o Podcast, Eric. Já indiquei para vários alunos meus de escrita. A gente precisa disso!