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Pertencimento
São 6:40h da manhã e o sol pincela a gata Morgana adormecida sobre sua almofada favorita, seu símbolo de constância num processo de mudança que tem sido atribulado. Seus sonhos e suspiros ignoram os ruídos do plástico bolha ainda espalhados pelo novo apartamento junto com um labirinto de caixas de papelão e me lembram que às vezes basta um cafuné e uma almofada para se fincar bandeira num espaço outrora estranho e passar a vê-lo como lar. Mudou o apartamento, sua realidade por três anos inteiros, mudaram os cheiros e as referências. Esse é seu primeiro cochilo tranquilo desde que aportamos no novo endereço. Enquanto contenho o ímpeto de estender a mão para um cafuné e evito acordá-la, me pergunto, nesses anos recentes tão atropelados de mudanças, o que ancora meu pertencimento?
E você? Saberia definir sua almofada favorita?
Cheiros
O ser humano tende a se ver como referência de inteligência, linguagem. Mas cada ser vivo possui seu próprio código de comunicação. Gatos, por exemplo, usam ecolocalização para saber onde estão os outros moradores da casa. Aquele miado aleatório que parece meio perdido pode ser uma espécie de “oi, é só pra você saber que eu vim aqui no quarto rapidinho”. Responder com um “oi, eu continuo aqui na sala” costuma acalmá-los. Outro código fundamental para os felinos é o cheiro. Quando se esfregam nas coisas costumamos dizer que estão marcando território. Mas o que isso significa de fato? Mais do que um aviso para a concorrência essa é a maneira dos gatos transformarem um território estranho em um ambiente familiar. Esfregar-se na parede depois de receber um carinho é como escrever no diário “aqui aconteceu algo de bom comigo”. Estamos tão acostumados com o aprendizado pela bronca, pelo reforço negativo do “não faça isso, moleque” que demoramos a entender uma espécie que aprende pelo reforço positivo.
Seus cheiros também podem ser diferentes e sinalizar para outros gatos da casa o humor do dia. “Não estou a fim de interações, me deixa quieta no meu canto”, “Quero companhia, vamos deitar juntinhos?”. As glândulas que possuem ao redor do ânus também servem para se comunicar e levam àquela situação engraçada de gatos empinando a bundinha para receber carinho, sua forma de dizer “viu como eu confio em você?”
São mais de 200 milhões de células olfativas contra 5 milhões dos humanos. Aqui em casa, sempre que volto da rua, vejo Dexter e Morgana movendo os narizinhos para me ler. A audição deles também é impressionante, cerca de 50 vezes mais apurada do que a nossa, batendo inclusive a audição dos cães.
Há códigos nos cheiros como nas marcas deixadas nos sofás (pobres sofás) e nos arranhadores, no tom dos seus miados, na linguagem corporal. Gatos conseguem aprender algumas palavras (sempre me surpreendo com isso), mas a mágica da comunicação está mesmo no tom de voz e em como você se posiciona ao falar com eles. Uma posição estranha pode causar medo. Para um gato que já sofreu violência de humanos uma posição muito enérgica pode ativar vários traumas. A voz elevada pode quebrar a relação de confiança construída pelo afeto. Quando os humanos favoritos de um gato discutem em voz alta eles tendem a se aproximar e miar desesperados com a situação. Mais do que uma curiosidade é importante entendermos esses códigos para nos comunicarmos com outras espécies sem humanizá-las. Humanizar a interpretação do que um animal está fazendo é impor nossa linguagem a eles e, nesse ato de superioridade hipócrita, deixar de entendê-los por completo. Além de ser perigoso para o próprio bichinho que passa a ser culpado por sentimentos que não pertencem a ele e paga o pato pela falta de terapia dos humanos ao redor.
É preciso humildade para se ver como parte de um todo e não acima dele. Tem a ver com nossos gatos, mas não só. E o planeta nos lembra disso dia após dia.
Se ver como parte da natureza é olhar para ela e se perguntar: o que posso aprender hoje com você?
Me ajudam numa enquete?
Em janeiro quero trazer uma nova lista de indicações para a Encruza e peço a ajuda de vocês para escolher o tema. Oito filmes para conhecer melhor o cinema brasileiro OU oito livros para conhecer melhor a literatura brasileira. A de filmes teria como recorte de Cidade de Deus para cá e a de livros a produção contemporânea.
Por também ser escritor assumo que a maioria dos leitores da Encruza acompanhem literatura brasileira, mas isso não é necessariamente verdade. E cinema brasileiro é aquele negócio, né? Mais um movimento de resistência num mercado cultural esmagado pela produção estadunidense.
Me conta aí, por qual dos dois a gente começa? É rapidinho, só escolher, nem dói o dedo.
Adoção e a psiquê felina
Sei que parece óbvio, mas animais não são brinquedos que se movem. Eles possuem uma psiquê complexa, como nós. Quando um gatinho sai de um abrigo (sempre superlotado) e desenvolve uma relação de confiança com um humano, passa a ver um ambiente como lar, e logo após é devolvido isso destrói o gato por completo. Gatos devolvidos emagrecem, ficam deprimidos de verdade e param de comer, de se banhar. Os pelos caem, a pele se abre em feridas. Pessoas que prestam serviço voluntário em abrigos ou visitam lares de acumuladores sabem a diferença que um pouquinho de afeto faz na saúde mental de um gato. Às vezes um carinho é suficiente para reacender a vontade de um gato desnutrido ir se alimentar.
Durante a pandemia muitas pessoas abandonaram seus animais por terem perdido empregos, estarem doentes e sem dinheiro para comer e isso me parte o coração. Mas me deixa muito, mas muito puto, saber de gente que, tendo condições, adotou gatos durante a pandemia por estar se sentindo só e os abandonou quando a pandemia passou. “Meu namorado não gosta”, “é que eu vou viajar”, “é que na nova casa não cabe”. Conheço um caso de uma pessoa que faz isso compulsivamente. Adota, devolve, adota, devolve. Persona non grata nos abrigos.
Não seja essa pessoa. É claro que nem tudo é perfeição. Nem tudo é um, vídeo de 20 segundos no Instagram e no TikTok com uma frase qualquer para manipular a narrativa. Às vezes dá trabalho adaptar o gato. Às vezes ele não se adapta mesmo aos antigos habitantes. Cada caso é um caso. São personalidades complexas escritas sob histórias complexas antes de os conhecermos. Mas é importante pensar no bem-estar do bichano, vê-los como seres vivos e não como bibelôs. Mais uma vez, é preciso humildade para lidar com o mundo não-humano.
Falando em redes sociais
Dava uma edição inteira falar desse momento das redes sociais em que a cópia de ideias se institucionalizou e do que isso tem a ver com códigos de linguagem. Vou dar um exemplo simples: eu filmo um filhote de gato andando no sol. É esse o fato. Na hora de postar eu adiciono “filhote anda pela primeira vez no sol”. Cria-se a narrativa. “Filhote anda pela primeira vez no sol depois de viver num abrigo”. Cria-se outra. “Você não vai acreditar no final 😭😭😭”.
O perigo para os bichos é esse grande stand-up comedy da mediocridade que tem alimentado as redes de vídeos. Estou filmando meu gato andando pelo sofá, ele tropeça e cai. Eu posto isso no meu Instagram. O vídeo viraliza, é considerado um sucesso pelo algoritmo. Ele se torna uma ideia a ser copiada. Mas o acaso não pode ser copiado. Então as pessoas forçam situações de perigo ou desconforto para os animais para poder filmá-los e também viralizar.
Ninguém vai dizer “forcei uma situação artificial que poderia machucar o gato só para ganhar likes”. No lugar, entra a voz automática da narradora montando a narrativa: “entrei no quarto para ver o gato e isso aconteceu kakaka”.
Kakaka o ka…
Estamos transformando vida em cenografia. Dando likes para animais claramente acuados e estressados em vídeos cheios de emojis de sorriso. Diferenciar o espontâneo do produzido, o vídeo de afeto do vídeo de exploração, é um debate tão importante quanto o da arte pelas mãos do artista versus a arte feita pela máquina de recombinação marketeada como inteligência artificial.
O pós-humanismo é aqui e agora.
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello
Seus textos me deram ainda mais vontade de adotar um gato. Mas é realmente importante falar sobre como eles são seres q merecem ser respeitados e não usados e forçados a fazer gracinha pras redes sociais, só estamos criando um novo circo pros animais dessa forma.
Por mais newsletters com fotos suas e dos gatos, praticamente sinônimos <3