Mariana Enriquez e o horror latino-americano
Os fantasmas da ditadura assombram a literatura
Nossa parte de noite
Meu primeiro contato com o trabalho de Mariana Enriquez foi o livro “As coisas que perdemos no fogo”, publicado no Brasil em 2017 e que logo se tornou um dos meus favoritos. Em seus contos, Mariana Enriquez explora uma Argentina que não a turística, e infunde ao horror forte carga social e política: cultos populares, moradores de rua que desaparecerem, aparições que acuam pessoas queer, polícias violentas, casas abandonadas, descobertas de ossadas; temas que dialogam com toda a América Latina, inclusive com o Brasil. Num dos meus favoritos, policiais tentam se livrar de meninos delinquentes arremessando-os num rio extremamente poluído, mas o rio acaba devolvendo esses meninos, agora transformados em algo mais.
Em “Nossa parte de noite”, romance vigoroso, sexual, sombrio e visceral de mais de 500 páginas, a dobradinha horror e política se mantém. A trama gira em torno de um grupo de pessoas ricas e influentes conhecido como a Ordem. Esse grupo segue há anos numa busca incansável pela única coisa que o dinheiro deles ainda não pode comprar: a vida eterna. Para receber essa receita de bolo da eternidade e driblar a morte eles cultuam uma espécie de deus lovecraftiano traiçoeiro e faminto que chamam de Escuridão. Evocá-lo, porém, não é feito para qualquer um. E é aí que os protagonistas entram em cena…
“Não havia notícias dos centros de detenção clandestinos, nem dos confrontos noturnos, nem dos sequestros, nem das crianças roubadas. Apenas crônicas sobre o Mundialito que estava sendo jogado no Uruguai, que não lhe interessava. Fingir normalidade às vezes era difícil quando estava distraído, quando estava tão irremediavelmente triste e preocupado” - Nossa parte de noite.
As garras do deus vivo
Juan é médium da Ordem. Embora seja cultuado como um deus vivo pelos seguidores da seita, os fundadores o mantêm em rédeas curtas por ele ser o único capaz de incorporar a Escuridão. Ser um médium desta ordem cobra um preço de Juan, que está com a saúde debilitada e o pé na cova, como se a própria Escuridão o quisesse para si. Por isso a Ordem já está de olho em Gaspar, filho de Juan, para descobrir se ele também manifestará o dom de se comunicar com a entidade ancestral. Juan, por sua vez, está disposto a fazer de tudo para salvar o filho deste destino. De tudo MESMO. E é a partir dessa tensão entre a Ordem e um pai protetor e da tensão entre esse pai e o filho que ignora sua dimensão sobrenatural sem compreender o comportamento errático e a agressividade de Juan que a história se desenvolve.
Ah, para quem já leu a encruza sobre Horror Queer, vale comentar que Juan é bissexual.
Nossa parte de noite não segue linearidade temporal. Da mesma forma que suas partes adotam personagens distintos como eixo narrativo, a época na qual se passam também pode variar, o que nos permite acompanhar a trajetória de Juan e Gaspar por momentos diversos de suas vidas. O início, quando Gaspar ainda é só uma criança e Juan está começando a colocar as garras de fora, se dá em 1981, período em que a Argentina vivia sua ditadura mais violenta (1976-1983). A conjuntura perfeita se você é um rico ocultista que precisa se livrar de cadáveres sem chamar atenção.
A ditadura argentina, aliás, é um tema recorrente da obra de Mariana Enriquez. Ter vivido esse período marcou a autora e é presença constante na sua escrita. Mas isso não quer dizer que toda sua obra deva ser analisada somente por esse prisma. Nas palavras dela: “[Nossa parte de noite] começa com a ditadura e há uma relação clara entre a ditadura e os primeiros acontecimentos da história. Mas acho que tem mais a ver com uma situação de abuso de poder, e do poder desmedido por parte de pessoas que saem impunes, e em como esse poder produz situações de terror”.
Tal afirmação me levou a outra de suas considerações, não lembro se ouvida pessoalmente na sua passagem pelo Brasil ou se em alguma entrevista online, mas que guardo até hoje comigo. Na ocasião, ao falar de As coisas que perdemos no fogo, Mariana Enriquez citou os policiais violentos do conto dos meninos arremessados ao rio. Disse que pessoas que conviviam com polícias violentas sentiriam um medo familiar ao ler o conto, mas que era o horror como gênero, como linguagem, que possibilitava a leitores que nunca estiveram diante de uma polícia executora como a nossa sentir medo do que leem e entender a dimensão do perigo não vivido.
E a isso acrescento: eis aí um dos grandes trunfos do horror. Sua potência e capacidade de comunicação.
“Para as pessoas da minha geração, que cresceram no clima mórbido da pós-ditadura lendo notícias explícitas sobre torturas, sequestros e crianças sequestradas, o que dá medo não é a tumba, mas a falta dela, os corpos não identificados jogados em valas comuns. Um cemitério onde há mortos com nomes e datas é um lugar que me tranquiliza” - Mariana Enriquez.
O Brasil é uma experiência de horror
Secretário de Turismo do estado de SP, escolhido pelo bolsonarista Tarcisio de Freitas, é pastor que já defendeu cura gay e foi contra casamento homoafetivo.
Estátua de Mãe Stella de Oxóssi é incendiada em Salvador (imaginem se fosse a estátua do Borga Gato, que escândalo seria…)
Clubes de tiro criados durante governo Bolsonaro cercam terras indígenas na região do Parque Xingu e fortalecem agromilícias.
“Eles podiam brincar de se esquecer, mas não por muito tempo” - Nossa parte de noite.
Resumão do 64º prêmio Jabuti (2022)
Romance literário - O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk
Romance de entretenimento - Olhos de Pixel, de Lucas Mota
Poesia e livro do ano - Também guardamos pedras aqui, de Luiza Romão
Quadrinhos - Escuta, formosa Márcia, de Marcello Quintanilha
Contos - A Vestida, de Eliana Alves Cruz
Crônicas - A lua na caixa d’água, de Marcelo Moutinho
Esse ano consegui a façanha de ainda não ter lido nenhum dos contemplados, embora tenha alguns deles no meu leitor de ebooks. E você? É fã de algum deles? Estava torcendo para outro finalista? Me conta nos comentários…
Inspiração poética
Nossa parte de noite para suportar
Nossa parte de alvorecer
Nosso vazio para encher de felicidade
Nosso vazio tomado pela indiferençaAqui uma estrela, e ali outra mais
Algumas se perdem pelo caminho!
Aqui uma névoa, e ali outra mais
Depois… o dia a nascer!
- Emily Dickinson
(tradução livre desse que vos escreve).
Um abraço,
até a próxima,
a gente se lê!
Pós-Encruza:
O Horror que emana do poder - Oscar Nestarez entrevista Mariana Enriquez
Podcast da editora Intrínseca sobre Nossa Parte de Noite, com participação de Antônio Xerxenesky.
Entrevista da Mariana Enriquez para o The Guardian.
deu vontade de ler a Mariana e lembrei do filme novo do Darin, o 1985. Chegou a ver?
beijo.
Esse livro é sensacional.