Quem é você?
Existe algo simples e poderoso em charadas. Para o ouvinte só é possível ganhar o jogo se ele aceita o pacto de se tornar parte da solução. Nossa bagagem, visão de mundo, são as únicas fontes de uma resposta, geralmente uma que sempre esteve bem debaixo do nosso nariz. A recusa de participar do jogo dá a vitória ao questionador.
Em The Batman (Matt Reeves, 2022) o vilão Charada desempenha um papel importante no cinema pela primeira vez em muitos anos. Uma estratégia perspicaz não só pela posição que esse filme ocupa num enorme legado de adaptações, mas também se consideramos o mundo de leitura cada vez mais complexa em que vivemos e com o qual esse filme precisa dialogar. Um mundo que obriga parte de nós a encarar o espelho todo santo dia e responder a pergunta mais difícil de todas: Quem é você?
Você tem medo de quê?
A decisão não foi por acaso. Quando Chris Nolan fez Batman Begins (2005), o primeiro filme da sua trilogia, escolheu o medo do cavaleiro das trevas como o elemento que definira a personalidade do herói e guiaria a trama. Ao apresentar pela primeira vez um bom filme de origem para o vigilante, mostrou como o menino assustado foi envolvido por morcegos numa caverna e entendeu que para levar “justiça” a Gotham City, precisaria se tornar aquilo que lhe dava medo e, a partir daí, causar esse “medo” nos outros - uma contradição inerente a este personagem que assistiu, ainda criança, ao assassinato dos próprios pais.
Como o vilão Espantalho usa uma toxina capaz de fazer suas vítimas alucinarem com o que lhes dá medo e não estava desgastado por adaptações anteriores, certeiro que fosse ele o escolhido para ser antagonista. No filme seguinte, vale notar, Nolan abandonou o tom quadrinesco de Batman Begins e investiu forte na estética realista. Seu Coringa e o caos que ele representa, a barbárie imprevisível que põe em cheque as bases da civilização, é uma metáfora para um mundo lidando com outro tipo de medo, o terrorismo. Novos tempos, novas questões, novas leituras.
Muito aconteceu no audiovisual hollywoodiano desde então, agora tomado por heróis e vilões de toda espécie. Nesse meio tempo, virou lugar comum falar do Batman nas redes como “aquele rico que sai à noite para bater em pobre”, uma frase fácil de replicar e que parece dizer muito, mas no fim só arranham a superfície da questão… O dilema inescapável para toda e qualquer obra de ficção: como pactuar com a abstração e a suspensão de descrença que a ficção nos propõe sem “trair” certo nível de responsabilidade com a realidade da qual ela se alimenta?
Para ajudar: Na segunda temporada de Demolidor, vemos o herói e o Justiceiro conversando sobre suas diferenças. Justiceiro acha que “criminosos” devem morrer. Porque se você os entrega ao sistema e eles são presos, logo estão de volta às ruas. Demolidor, um advogado católico, acredita no sistema. Ele não mata, não é juiz, não é Deus. A distinção é simples. A suspensão de descrença está em taparmos os olhos para o fato de que o Demolidor não mata, mas desce a porrada de maneira violenta em todo mundo sem dó, o que o torna também uma espécie de juiz, justo o que ele diz repudiar. Superman? O símbolo da esperança, todo bonzinho, todo do bem, tão galera. Um homem branco hetero cis vestido de bandeira dos Estados Unidos funcionando como polícia do mundo sem precisar respeitar fronteiras. E por aí vai. Se o ponto é problematizar heróis, discussões não faltam.
Isso muda o fato de o Batman ser um cara rico saindo para dar porrada à noite nos outros? Nope. Mas é preciso lidar com essa camada de complexidade dentro da lógica daquele universo, mais precisamente da lógica de Gotham City, uma cidade de diegese bastante peculiar quando pensamos na sua atmosfera detetivesca noir misturada a psicopatas espalhafatosos e elementos de fantasia urbana.
Cofres e manicômios
Embora curtisse ler quadrinhos desde cedo, foi Asilo Arkham (1989), com roteiro de Grant Morrison e arte de Dave McKean, que fez eu me apaixonar de vez por Gotham City. Nessa HQ incrível e brisadíssima, a provocação do Coringa é mostrar ao Batman que o herói pertence ao manicômio de Arkham assim como os vilões que põe lá dentro. As fronteiras entre o vigilante mascarado e os criminosos que ele persegue são apontadas como tênues. Sempre foram. Em Gotham, uma cidade com forte conexão com a literatura policial, a “solução” também é parte do problema. O Jim Gordon de Gary Oldman mostrando a carta do Coringa para o Batman no final de Batman Begins tem uma fala mais ou menos nessa direção.
Corta para a dinheirama da família Wayne. Talvez essa sim seja uma questão que vem sendo esmiuçada com mais intensidade em anos recentes. Batman, por não possuir poderes e ter se tornado cada vez mais um herói tecnológico, recorre ao mesmo recurso narrativo de um personagem como o Homem de ferro. Só alguém rico para caceta conseguiria ter um monte de apetrechos e perdê-los em batalha um dia após o outro sem ir à falência. Enquanto a Marvel foi atrás de pensar fontes mais dignas de $ para seus heróis (Stark industries versus Wakanda, p.ex.), a visão mais policialesca inspirada por Gotham levou alguns roteiristas do Batman por outra direção: corrupção. Um caminho já pavimentado pelos mafiosos Maroni e Falcone em HQs anteriores. É possível alguém ter tanto dinheiro e influência como a família Wayne conquistou sem ser corrupto e esconder algum podre? Fanboys de bilionários, por favor, não respondam! The Batman, do Matt Reeves, parece indicar uma reflexão nesse sentido. Pobreza e riqueza no capitalismo, duas faces da mesma moeda.
Para a narrativa a questão não é se a família Wayne é boazinha ou não. A questão é se o Batman julga os seus com os mesmos critérios que julga os demais.
Se você leu A Corte das Corujas ou jogou os jogos da Telltale sabe do que estou falando. Aliás, os jogos da Telltale, algo me diz, possuem muito em comum com o filme novo. A conferir.
Enfiado o dedo na ferida da família Wayne, nos resta voltar àquela que promete ser uma das melhores encarnações do Charada. Com uma faceta mais Jigsaw como já acontecia nos jogos da Rocksteady e visual “inspirado” num psicopata real (Assassino do Zodíaco), o Charada é, acima de tudo, um questionador. E, já sabemos, o único jeito de derrotar uma charada é aceitar o pacto de se tornar parte da resposta.
Medo versus Trauma
Isso põe o Charada de Reeves numa posição diferente do Espantalho de Nolan. Enquanto o Espantalho era uma escada para o desenvolvimento do Batman, o Charada parece carregar sua própria história. Seu próprio passado para lidar.
Pelo trailer tive a impressão de que Matt Reeves mirou num diferencial importante em relação aos seus antecessores: o entendimento de que a gênese do morcegão não é o medo por si, e sim o trauma que origina esse medo. E que pessoas podem vivenciar traumas de maneiras muito diferentes, tomando a partir daí caminhos distintos… Distintos? Bem, talvez seja justamente esse o ponto. Se a matança do Charada mirar alvos corruptos como o trailer leva a crer, teremos em cena também o debate sobre vigilantes. Por que o Batman pode escolher em quem bater e o Charada não pode escolher quem matar? Alguém chame o Justiceiro e o Demolidor rapidinho para dar uma ajuda.
É. Embora as redes sociais tenham se tornado um manancial de certezas absolutas para todo e qualquer assunto, não vivemos num mundo de respostas fáceis. Ou, sendo um pouco mais crítico, vivemos com mais consciência de que respostas fáceis nunca existiram.
A ideia, lógico, não é encerrar o debate. Pelo contrário, é mostrar que Gotham City é material para muitos debates interessantes. Sendo assim, o único jeito honesto de terminar essa newsletter, é devolver a pergunta feita pelo Charada no trailer do filme e transformar você, leitor, no seu próprio cavaleiro das trevas:
“Se você se diz justiça, não minta ao responder. Qual é o preço do que você finge não ver?”