Mais do que festa, o samba é resistência
Carnaval… Alienação ou festa política?
Começam os ensaios técnicos das escolas na apoteose, os bloquinhos tomam as ruas com suas marchinhas provocantes. No ônibus e no metrô tudo é festa, confete e serpentina. Pessoas cobertas de purpurina se esquecem por alguns dias do perrengue cotidiano para curtir uma vida de liberdade. Algumas se juntam aos foliões, outras preferem se recolher no silêncio, fugir para lugares tranquilos. Os mais empenhados viram a madrugada acompanhando os desfiles na TV e torcendo pela sua escola favorita. Alguém falou Estação Primeira? Salgueiro? Mocidade? E há também quem torça o nariz para o Carnaval, não por causa da bagunça, do barulho, mas por considerá-lo uma forma de alienação.
País do samba e do futebol. Bando de alienado.
Será mesmo?
Essa é uma edição especial de Encruza de Carnaval, escrita entre um beijo e outro num beautiful stranger, com frases embrigadas e pensamentos levemente embaralhados pelo ritmo da folia, para nos lembrar de que o samba, assim como o fervo, também é luta. E uma importante ferramenta sociocultural na manutenção da nossa memória.
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Crime de vadiagem
Quem vê o samba assim soltinho, atraindo turistas do mundo inteiro e aprontando todas pelas cidades, nem imagina que o danado já sofreu muita perseguição nesse país. Parecia até o funk, coitado. No início do século XX, seus músicos eram tratados como vagabundos e as festas coibidas com violência. Leis ambíguas permitiam que a polícia deitasse e rolasse. Soa familiar?
Portar um pandeiro em público, veja você, podia até acabar em prisão se os policiais o considerassem prova de crime de vadiagem e de subversão. Pode perguntar ao João da Baiana se você quiser. O músico só não se lascou de vez porque um figurão (conservador) da nossa política curtia um sambinha e lhe escreveu uma espécie de livre-conduto, um autógrafo no novo pandeiro de João. Era só mostrar o instrumento para os policiais e eles o deixavam passar. O feito estilo “o Brasil não é para amadores” tornou seu caso famoso. Mas tivemos muitas vítimas além dele. E para entender a criminalização dos sambistas (spoiler: racismo) convido você a dar uma pernada para trás.
Logo após a abolição da escravatura, muitos dos escravizados recém-libertos se viram sem oportunidades dignas de trabalho. Desamparados pela ausência de uma política de inserção social, parte da população acabou alimentando o mercado informal e correndo para subempregos no centro urbano do Rio de Janeiro. Enquanto a outra, mais “sortuda”, era “civilizada” na base da humilhação para se tornar uma massa assalariada obediente. Um texto de muitas aspas essa nossa encruza carnavalesca.
Ver pessoas negras livres, tendo domínio de seus próprios corpos a zanzar, dançar, cantar, jogar capoeira e flanar em botequins deixava muita gente de cabelo em pé. Isso ainda lá em 1890. O feito mudou a dinâmica sócio-cultural da cidade escancarando questões que a escravidão abafava na marra. Para conter os ânimos das oligarquias e promover uma política de higienização urbana, a estratégia política foi mexer no código criminal e alterar a definição de vadiagem. As mudanças tinham um alvo óbvio. Ganha um lança-perfume quem adivinhar qual era. Não bastasse a estratégia cruel de perseguir pessoas sem emprego ou sem endereço definido, o capítulo dos “vadios” contava também com um artigo voltado diretamente à capoeira, e era nele que eu queria chegar.
Houve uma época em que samba e capoeira andavam agarradinhos, trocando ensinamentos nas rodas e na batida do tambor. A capoeira era a atração principal, e o samba uma espécie de companhia e show de encerramento. Tudo acontecia junto e misturado, tudo era corpo em movimento. Por consequência, quem perseguia um, perseguia o outro.
E não ache você que era somente a polícia que encrencava. Nos jornais da época há pencas de denúncias de leitores (quais seriam suas cores?) que escreviam para reclamar de rodas unindo música e capoeira noite adentro. Ficavam horrorizados com tanta música, jogatina e festividade. Sementes de um ideário fascista que, seja nas suas encarnações anteriores ou posteriores, sempre gostou de controlar corpos e castrar subjetividades.
Nós que vivemos no futuro sabemos que o samba resistiu e se tornou sinônimo de Brasil assim como a capoeira. O que significa dizer que a população negra resistiu. Mas a perseguição durou um bocado. Foi começar a dar sossêgo lá no governo de Getúlio Vargas por conta do seu projeto nacionalista de valorização da cultura brasileira, ideia fortalecida depois de uma visitinha à Alemanha. É, bem naquela época… De quebra, o então presidente ainda regulamentou os desfiles na tentativa de dar forma à bagunça, aproximar elites e o populacho. Chega de perseguir sambistas. Devemos é aplaudi-los! Quer dizer, a não ser que o sambista em questão resolvesse escrever uma letra tirando sarro do governo ou falando que trabalhar era coisa de otário. Aí o bicho pegava com a nova lei de vadiagem.
Do site da Fundação Biblioteca Nacional:
A região denominada Pequena África – expressão cunhada por Heitor dos Prazeres – estendia-se pela área dos bairros da Gamboa e Saúde até o Estácio. Considerada o lado negro e pobre do Rio de Janeiro, abrigava as famosas casas de candomblé – como as casas de João de Alabá e Tia Ciata – onde, ao fim dos cultos religiosos, se realizava o samba.
CICERI, Eugène. [Rio de Janeiro, A Prainha, tomada da Saude]. Paris, França: officina Lemercier, 1852. Litografia.
Resistência e resgate
Samba e política estão ligados desde o início, e no reinado das escolas de samba e dos sambas de enredo não é diferente. Assim como na escrita de um livro, a composição de um samba-enredo permite falar de temas banais, se fantasiar de post patrocinado, mas também permite ir à luta resgatando o passado a partir de novos recortes e levantando bandeiras importantes. Tirar personagens históricos dos escombros, salvá-los de um esquecimento premeditado, refrescar nossa memória sobre feitos relevantes é algo que nosso samba-enredo tem feito muito bem, obrigado. Como diz o oriki de Exu, podemos acertar o pássaro de ontem com a pedra atirada hoje, e o samba-enredo aprendeu com maestria a beber da nossa história.
Não que as escolas sejam santas, veja bem. Durante a ditadura, o Carnaval estava repleto de temas patrióticos sugeridos pelo regime autoritário que passara a ver na festa popular uma ferramenta de divulgação. A pinima eterna com a Beija-Flor vem daí, inclusive. Mas também houve luta, faísca, cutucada. Salgueiro, sempre pioneiro, em 1957 levou para avenida o samba Navio Negreiro, fazendo história e influenciando temáticas a partir de então. Na década de 1960 veio falando de Zumbi dos Palmares, Chico Rei e Chica da Silva quando esses nomes estavam longe das pautas escolares e da cabeça da maioria da população.
Em 1969, no Carnaval seguinte ao AI-5, Império Serrano cantou seu Heróis da Liberdade se fazendo nas entrelinhas:
Com flores e alegria veio a abolição,
A Independência laureando seu brasão
Ao longe soldados e tambores,
Alunos e professores,
Acompanhados de clarim cantavam assim:
Já raiou a liberdade, a liberdade já raiou.
Os militares chilicaram, deram voos rasantes sobre a avenida. Em 1969 foi também o ano do Salgueiro levar Xangô para avenida pela primeira vez. Só não foi pioneiríssimo nessa porque a São Clemente citou Iemanjá num samba em 1966. Esse ano, 2023, Viradouro contará a vida de Rosa Egipcíaca, uma das figuras mais interessantes da nossa história e que só vim a conhecer recentemente por conta de pesquisas para o novo livro. Mangueira virá falando das “Áfricas que a Bahia canta”. Imperatriz Leopoldinense falará de cordéis. E o Salgueiro, ah, esse Salgueiro, meterá um “Delírios de um Paraíso Vermelho”. Pra bom entendedor um título basta.
Curioso perceber que as representações dos orixás, hoje uma presença tão marcante nos desfiles, foram chegando de fininho. Apareceram num verso aqui, numa fantasia ali, numa alegoria acolá, enquanto algumas escolas davam passos para desembranquecer a temática dos desfiles e encontrar uma identidade. Encontrar? Talvez o verbo mais preciso seja resgatar.
Pensar nesse vaivém nos ajuda a lembrar que cada centímetro desse espaço foi fruto de conquista, de resistência a uma política violenta de segregação e extermínio, nada veio de graça. No meio da festa da alegria e da libido há uma luta incessante, e essa combinação não se dá por acaso. Mesmo quando o tema do samba-enredo parecer irrelevante par quem escuta, a luta pode estar presente em outras camadas, na linguagem do tambor que bate pros orixás.
Pois é, nossa festa alienada é assim.
Fez-se a luz, fez-se a luta e fez-se o samba.
Cada escola é uma aula por si, é história que não acaba mais.
Como dito pelos compositores Máximo e Manu da Cuíca, o samba é o desabafo sincopado da cidade. Dez dias de desabafo para recuperar o fôlego e recarregar as energias para seguir na nossa batalha por um projeto de país menos nacionalista e mais brasileiro. Para azar de muitos e sorte nossa, mesmo domesticado pelo capital, o Carnaval segue imprevisível e perigoso.
Inspiração poética
É samba que eles querem
Eu tenho
É samba que eles querem
Lá vai
É samba que eles querem
Eu canto
É samba que eles querem
E nada mais
- Jackson do Pandeiro e Severino Ramos
Um abraço,
beijem muito,
usem PrEP,
camisinha;
a gente se lê!
Pós-Encruza:
Samba de enredo: História e arte, de Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas
Uma história do samba, de Lira Neto
Podcast História Preta fala de Rosa Egipcíaca
Dicionário da história social do samba, de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas
Quando tocar samba dava cadeia no Brasil, reportagem da BBC