Os Sonhadores
Eric Novello
*versão levemente modificada de um conto que enviei para os apoiadores do meu antigo Catarse.
A ilha fazia parte da minha infância. Por muito tempo, ela foi minha referência de mundo ideal, o lugar onde eu brincava com minhas irmãs e me jogava no colo dos meus pais com uma alegria que extrapolava os limites do coração. Um pedaço de terra cercado de água por todos os lados ganha um novo significado quando se mora num lugar assim. A cidade para onde íamos todas as manhãs na lancha da família – barulhenta em seus ruídos, intoxicante com o cheiro de poluição – para frequentar a escola ou fazer compras de mercado e vestuário, essa sim era um mundo de faz de conta. Na ilha eu me sentia alguém real.
Na tarde gravada na minha memória, nuvens muito brancas se moviam vagarosas por um belo céu azul. Nós três corríamos como loucos pela colina verde pontilhada com as flores miúdas das gramíneas que brotavam na primavera. Minha irmã mais nova nos perseguia aos risos, enquanto nossos casacos se transformavam em capas mágicas com a força do vento e da nossa imaginação.
Eu estava cansado da brincadeira e pedi para nos sentarmos um pouco junto à parede pedregosa que dava para o mar, ao norte da casa. No caminho, desabei no chão rindo da última besteira que falamos e acabei com Vitória, a caçula, pendurada nas minhas costas.
Escolhi meu canto de sempre para recuperar o fôlego e admirar a natureza: uma pedra redonda e gasta que me dava alguma segurança nas reentrâncias da encosta. Ela ficava sob a sombra de uma mangueira que meu pai dizia ter plantado quando se mudou para lá com a minha mãe, muitos anos antes.
Nossa missão do dia era encontrar uma serpente de fogo, uma das criaturas mitológicas que habitavam a ilha. Camila, minha irmã mais velha, sempre espalhava pistas para nos ajudar. Ela as escrevia em forma de poesias e, nos fins de semana, as escondia entre meus cadernos e livros, dentro de um sapato embaixo da cama, no parapeito das janelas.
Aproveitava meus períodos de sono e distração para isso, embora na minha cabeça eu estivesse sempre atento. Sabendo do seu método eu já saltava da cama no sábado de manhã e, antes mesmo de escovar os dentes ou fazer xixi, começava a procurar.
Na tarde em que tudo aconteceu, eu havia encontrado um dos seus textos dentro do bolso do casaco junto com uma barra de chocolate com leite com amêndoas, meu favorito. O papel azul bem claro era sua marca registrada, e me animei assim que vi sua caligrafia inconfundível.
Morava uma serpente embaixo da ilha
Tão grande… que quando roncava de fome
A ilha inteira tremia.
A serpente tinha o corpo feito de fogo
Bastava sair da água e a pele inteira acendia
E mesmo que fosse tarde da noite
Era dia de novo, de novo era dia.
Por ser brava essa danada, quando deixava a toca
Quem fosse esperto se escondia
De onde ela veio? O que ela quer?
O que será que ela come?
Isso ninguém sabia.
Animado com a aventura que se anunciava, tirei o pijama, escovei os dentes, lavei o rosto e desci correndo para a mesa enorme de madeira que ficava na cozinha. Estavam todos lá me esperando. Esperando é uma forma de dizer, porque Vitória já afundava a boca num pão de forma com manteiga derretida. Dava para sentir o cheiro de longe.
Passei pelo nosso ritual de “bom dia” dando a volta na mesa. Camila estava na cabeceira, seu lugar costumeiro. Ela me olhou rapidamente, fez um comentário sobre meu cabelo bagunçado e perguntou se eu aceitaria um chocolate quente. Tínhamos um trato de não falar das aventuras na frente dos adultos, e mesmo Vitória com sua pouca idade sabia respeitá-lo.
Me sentei na cadeira junto a elas depois de dar um beijo nos meus pais. Ana, minha mãe, estava pondo mel em sua salada de frutas com granola, segundo ela uma opção mais saudável do que pão. Meu pai, Marcello, que não se ligava muito nessa história de dieta e saúde, passava geleia nas torradas sem economizar.
Era graças a ele que a ilha existia. Ou ao sobrenome da família. Meu pai havia herdado de seu pai, que havia herdado do seu avô as indústrias Piccolino, a maior marca de brinquedos do país. Seus inventos e personagens faziam parte da infância de milhares de pessoas, e da nossa de um jeito especial.
— Dormiu bem, Guimas? — minha mãe perguntou.
A mãe tinha o estranho hábito de estar sempre de bom humor, principalmente pela manhã, o que era mais estranho ainda. E sempre me chamava pelo apelido, mesmo se estivesse brava.
— Como uma pedra. Não fazer nada cansa demais.
— E correr o dia inteiro lá fora é não fazer nada? — meu pai perguntou.
— Bem, hoje é o último dia de férias de vocês. Então acho que seu problema está resolvido — minha mãe concluiu.
— Ei! De vocês não… Deles! — disse Camila. Ela havia passado para a faculdade no ano anterior, e seu ano letivo começaria duas semanas depois do meu e de Vitória. — Terei a ilha só para mim, o parque todo.
— A gente volta, tá bom? — disse Vitória, com sua voz esganiçada de criança e a boca cheia de migalhas.
— Na verdade, a gente vai passar uns meses no apartamento na cidade, meu amor. E só vem nos fins de semana. É assim no começo das aulas, se lembra? Para dar tempo de comprar tudo o que precisa comprar e para vocês matarem a saudade dos amigos, se adaptarem direito.
— Isso não é justo — Vitória respondeu, nem aí para os amigos.
— Nem um pouco justo — concordei, numa cara de birra fingida que parecia natural aos meus quatorze anos de idade.
— Encontro vocês na cidade antes que tenham tempo de sentir saudades — disse Camila, dando um gole no seu chocolate quente. — Ou talvez não. — E soltou uma risada.
A conversa à mesa durou mais meia-hora. Nenhum de nós queria desperdiçar o último dia dentro de casa, então calçamos os chinelos e corremos para fora.
— Nada de irem para os lados do parque, hein? — meu pai avisou. — Fiquem só nas proximidades da casa.
— Pode deixar! — gritou Camila, já do lado de fora.
Para ser sincero, nenhum de nós gostava muito do parque que fazia parte do complexo da ilha. Uma construção voltada para turistas, baseada nos brinquedos da Piccolino, com atrações que perdiam a graça se você convivia com elas ano após ano e que de noite pareciam assustadoras.
Deixamos a sacada para trás, atravessamos o gramado do jardim da frente e andamos um pouco até achar nossa trilha favorita. Sem aguentar meu silêncio, minha irmã perguntou:
— E aí?
— E aí o quê? — tentei desconversar, mas comecei a rir quando ela me ameaçou com cócegas.
Com o papel na mão, li a poesia em voz alta. Enquanto Vitória dava pulinhos animada com a brincadeira, Camila explicou que a serpente era um dos animais mais raros da ilha, difícil de ser encontrada e muito perigosa. Havia um boato, ela falou, que de vez em quando alguns dos visitantes da ilha desapareciam, e que a culpada era a serpente. Talvez levássemos a manhã inteira procurando por ela, não dava para saber.
E assim foi.
***
Seguindo pela área segura da encosta, depois de nos sentarmos na minha pedra favorita, demos a volta na casa e fomos para a região mais afastada, onde ficava o ancoradouro dedicado aos barcos dos turistas. Procuramos em cada aglomerado de moitas, em cada bosque onde o calor do sol justificasse a existência de uma serpente de fogo. Mas nada de ela aparecer.
No caminho de volta, paramos para beber água no poço. Era estranho beber água ali, porque ele era inspirado em um dos jogos de terror do meu pai e tinha um aviso enorme de “Cuidado com o poço” estacado ao lado dele, enfeitado com aranhas de serigrafia.
Eu estava frustrado de não termos encontrado a serpente e fiquei de mau humor. Sei que às vezes levávamos uma semana para conseguir uma pista nos desafios de Camila, mas aquele era meu último dia na ilha e queria sair de lá com uma boa lembrança, com mais um segredo desvendado para minha coleção.
Cansada da andança, Vitória estava dormindo em pé, sem forças para se exaltar ou reclamar. A fome da hora do almoço começava a bater. Senti uma ponta de inveja, lembrando dessa idade em que tudo era motivo de festa, e fiquei ainda mais emburrado.
— Ei, desmancha essa cara feia — disse Camila, ao me notar chateado. — Você sabe como são os mistérios da ilha. Só se revelam para quem é esforçado.
— Eu sei. Eu não queria ir embora sem você, acho que é isso que está me chateando — falei enquanto tirava água do balde com a mão em concha e molhava o rosto. O conteúdo da mão seguinte deixei descer pela garganta num gole farto.
— A gente se vê em quinze dias. É bom tirar umas férias dos irmãos de vez em quando, senão a gente enjoa.
Me esforcei para rir só para deixá-la contente. Eu nunca enjoaria da Camila. Mas era fato que havia algo me incomodando. Saudade antecipada, talvez. Vontade de continuar na ilha e adiar o começo das aulas. Ciúmes por ela ter duas semanas da atenção do meu pai sem ninguém para atrapalhar. Tudo era possível e nada muito provável.
— Você tá é feliz de ficar longe da gente — falei em tom de brincadeira.
— É claro! Imagine só quantos segredos eu vou poder esconder pela casa e pelo parque sem você e a Vitória por perto. Imagine tudo que teremos para encontrar quando vocês voltarem. Será a maior aventura da família Piccolo em anos!
Aquilo não havia me passado pela cabeça: Camila com tempo para elaborar suas aventuras, espalhar as pistas pela ilha inteira. Agora com um sorriso sincero, senti o mau humor se desfazer. Puxei o balde para perto de Vitória e falei para ela beber um pouco. Bem nessa hora, um ronco repentino, de tremer o chão, fez Vitória dar um grito.
— O que foi isso? — perguntei.
— É a serpente! É a serpente! — Vitória repetia sem parar.
— Deve ter sido seu estômago — impliquei.
— Será que ela entrou no poço? — perguntou Vitória.
— Duvido muito. Você sabe o que se esconde aí dentro. Acho que dois seres mágicos não dividiriam um espaço tão apertado. Sem falar que ela é muito grande.
— Então que barulho é esse? — Camila provocou.
— Que barulho é esse? — repetiu Vitória exagerando na dramatização.
— Acho que está vindo pelos canais de água. Se for o ronco da serpente, é sinal de que ela está dormindo embaixo da ilha, por isso não conseguimos encontrá-la de jeito nenhum — comentei mais animado. — Precisamos acordar a serpente! — falei em tom de desafio.
— Não aprendeu nada com a pista que eu deixei? Ela come gente!
— Ninguém sabe o que ela come.
— É claro que sabem, só não querem admitir — rebateu minha irmã mais velha.
— Eu quero acordar a serpente — fui ficando emburrado outra vez.
— Acho melhor a gente voltar para casa, a serpente venceu — disse Camila, e a brincadeira acabou.
***
Almoçamos em silêncio, o cansaço como álibi para afastar a suspeita dos nossos pais de que nosso humor não estava dos melhores. No fim, fui para o quarto tomar um banho e lá fiquei, usando a desculpa de ter que arrumar a mala para não expor minha frustração.
Nossa mãe me chamou para um lanche no meio da tarde e disse que se demorássemos mais, ficaria escuro para atravessar para a cidade. Como era ela quem pilotava nossa lancha na ida e na volta da cidade, levava os horários de segurança muito a sério.
Por menos que eu quisesse admitir, a hora de partir havia chegado.
Meu pai e Camila nos acompanharam até o ancoradouro da família, ele carregando as malas da minha mãe, e minha irmã a bolsa com as bugigangas de Vitória.
Nos despedimos com beijos e abraços apertados, a saudade competindo por espaço com o mau humor, e entramos na lancha. Minha mãe ajeitou as malas na barriga do casco, onde ficava uma cabine pequena, pediu para nos sentarmos direito e ligou o motor. Enquanto meu pai acenava, parado no lugar, Camila correu contornando a parede de pedras, sacudindo os braços no que interpretei como um tchau, e por isso comecei a sacudir os meus também.
Ao notar que eu não havia entendido, ela começou a apontar para o lado oeste da ilha. Só quando o barco se afastou o suficiente e ganhou o mar foi que entendi sua intenção. No sacolejo junto às rochas da encosta, a serpente se movia. Um visitante desatento a teria confundido com o reflexo do sol da tarde sobre as águas do mar, mas nós, os verdadeiros donos da ilha, conhecíamos todos os seus segredos.
Sem sucesso em acordar Vitória, fiquei lá revezando olhares entre a serpente de fogo e minha irmã mais velha que pulava no lugar, feliz com a resolução do mistério. Aquela versão que transbordava felicidade em nada tinha a ver com a versão na cama do hospital com a qual precisaria me habituar nos meses que se sucederam.
Nem meu pai nem minha mãe tocavam muito no assunto. Eu sabia apenas que ela havia sofrido um acidente. Escorregado em uma área íngreme pros lados do parque depois da nossa partida e batido com a cabeça.
Todo fim de tarde, quando a visitava em seu quarto no hospital, ficava imaginando que aquele era somente mais um de seus jogos. Seu passeio demorado dentro da própria cabeça. Um jeito travesso da Camila espalhar suas pistas e preparar o mais rebuscado enigma da família Piccolo.
E assim que eu e Vitória desvendássemos o mistério, ela enfim despertaria.
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Um abraço e até a próxima,
Eric Novello