Um jabuti caminha ao som de Gal Costa
Uma edição com a autora Julia Dantas e a cantora Filipe Catto
Salve, encruzilheiros. Começo os trabalhos comentando “Belezas são coisas acesas por dentro”, álbum da Catto que curti demais em 2024 após vê-la apresentando as canções ao vivo, e “Ela se chama Rodolfo”, livro da Julia Dantas que foi minha primeiro leitura de 2025 e jogou a barra de qualidade lá para cima. As próximas leituras que se cuidem.
“Murilo explicava para Gabbriela que não sentia medo de interações sociais, sentia desânimo. A ideia de trocar palavras ocas com quem ele não tinha intimidade lhe parecia um imenso desperdício de vida” - Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas.
Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas
Fácil um candidato a xodó de 2025, Ela se chama Rodolfo começa com o protagonista Murilo indo morar num novo apartamento após tomar um pé da bunda da ex-namorada new age, Gabbriela com dois bês. Seu objetivo é se tornar uma pessoa melhor para depois ir atrás dela, provar que mudou e reconquistá-la. Gabbriela acha que ele é muito apegado, dependente, carente (e é mesmo, coitado), e terminou com ele para ir morar num retiro criado por um guru picareta. Guru, para quem não sabe, é a versão 1.0 do coach. O picareta é pleonasmo intencional. Pensei que o romance seguiria algo característico desse tipo de história: protagonista de humor rabugento achando que quer voltar para um amor do passado até, surprise, surprise, um novo amor aparecer. Tolinho. Julia Dantas usou esse trampolim para brincar com possibilidades mais interessantes e divertidas, e as pataquadas de Murilo logo se misturam a reflexões existencialistas que me pegaram de jeito. Tudo isso sem abrir mão do bom humor.
O evento que põe a trama em movimento tem a ver com o Rodolfo, uma “tartaruga” que Murilo encontra no apartamento para onde se muda. Rodolfo foi abandonada pela antiga dona, Francesca, que foi morar ninguém sabe onde. Por se sentir incapaz de assumir a responsabilidade de cuidar de algo, Rodolfo entra em contato com Francesca para saber o que fazer com a tartaruga. Francesca então sugere a Murilo pessoas com quem deixar Rodolfo e isso vai trazendo movimento ao livro. São diversas tentativas frustradas que levam o protagonista a conhecer todo um repertório de personagens digno de Alice no País das Maravilhas, apesar do realismo. Às vezes as pessoas não querem a tartaruga. Às vezes Murilo não as acha responsáveis o bastante para ficar com ela.
Cada nova frustração leva a um novo e-mail, e Murilo logo se vê fascinado pelo mistério que é Francesca.
É com o vaivém por Porto Alegre e a curiosidade de Murilo que o livro vai revelando suas camadas. O próprio Murilo vai se mostrando um personagem cada vez mais complexo seja nas decisões que toma por conta de Rodolfo, naquilo que confessa nos e-mails ou, mais adiante, nas conversas que tem com outros personagens cruciais para a história: uma irmã que quer se separar de um marido doente terminal e um gay amigo de Francesca que brota no seu apartamento servindo de contrapeso às suas carências. Embora com histórias distintas, todos contribuem para as conversas do livro sobre identidade.
Um ponto que curti de monte foi que essa conversa passa por pensar questões de “gênero” e como isso influencia o cotidiano das nossas relações. Algo que já estava implícito no título engraçadinho no contraponto entre “ela” e “Rodolfo”. Tudo muito inspirado por parte da autora que usa o ressentimento de Murilo para nos conduzir por complexidades humanas que vira e mexe se veem higienizadas dentro da ficção mesmo que com boas intenções.
Curioso também apontar como Julia Dantas cria toda uma tensão em volta do destino de Rodolfo, um bichinho frágil que depende dos outros para sobreviver. Você e eu sabemos como a ficção costuma tratar animais. São sempre os primeiros a morrer para simbolizar o perigo que se aproxima dos humanos. Hierarquia de direito à vida firmada na divisão homem / natureza que também pauta racismos, machismos, homofobia, destruição do meio ambiente, mercado da carne e outras explorações sociais. Na ficção animais só não morrem mais do que mulheres e filhos pequenos em tramas nas quais um homem comum partirá na sua jornada de vingança. Ó, grande herói. Mas até com isso a autora soube fazer sua graça. Mesmo que Rodolfo, como símbolo de uma responsabilidade que ninguém quer assumir, nunca passe do seu papel de objeto para o papel de sujeito. Pobre Rodolfo.
Aliás, jabuti vive na terra, tartaruga no mar e cágado na água doce e nenhum deles come alface. Faz mal. Fica a nota para leitores desavisados. Se você tiver um jabuti seja melhor que Murilo e Francesca e ofereça folhas de couve e espinafre. E jabutis gostam de tomar banho de vez em quando, mas não podem ficar o tempo inteiro na água. Precisam de ambiente seco e de um solzinho. Bora cuidar direito dos bichos que eles e nós andamos precisando.
Pequenos poréns da simbólica Rodolfo à parte, terminei Ela se chama Rodolfo na vontade de ler os outros livros da autora: “Ruína y leveza” e “A mulher de dois esqueletos”. Gosto demais de livros que sabem se valer dos seus personagens e que falam de temas pertinentes sem parecer uma palestra de Ted Talks. Se ainda não conhecia, põe aí na lista de leituras que vale a pena. Se já leu algum deles comenta comigo o que achou.
Ela se chama Rodolfo foi publicado em 2022 pela DBA editora.
“Nos pequenos aborrecimentos do dia existe uma sombra da morte. Um mínimo desgaste e algo interior já morre nas esquinas do mau humor. Quantos Murilos já terão morrido desde que Murilo nasceu? Quantas possibilidades ficaram entre as lajotas das calçadas? (…) Todos os homens que não foi ainda moram dentro dele, pequeninos, à espreita, e não sabe se eles estão ali para dizer que se pode fazer o que quiser no mundo ou se para lembrá-lo de que ele falhou em muito mais coisas do que conquistou” - Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas.
Belezas são coisas acesas por dentro, de Catto
Falando em bagunçar a fronteira entre gêneros, um dos pontos altos de 2024 foi assistir ao show do álbum Belezas são coisas acesas por dentro, uma bagunça boa entre rock e MPB na qual Catto homenageia Gal Costa cantando alguns sucessos do vasto repertório da cantora. O álbum veio originalmente com 10 canções, incluindo aí Vaca profana, Esotérico, Tigresa e Vapor barato, e com o lançamento do vinil dois singles extras chegaram ao streaming. O show é mais encorpado com um setlist parte fixo e parte dinâmico que às vezes traz canções autorais da Catto, às vezes mais músicas conhecidas na voz de Gal e aqui e ali covers de outros artistas. Uma das minhas favoritas é Dê Um Rolê, reconhecida pelo refrão “eu sou amor da cabeça aos pés” que sempre causa um barulhinho bom ao vivo.
O grande diferencial para mim foi Catto ter feito esse álbum investindo firme no indie rock em vez de seguir o caminho de reproduzir a sonoridade de MPB pela qual Gal Costa é mais referenciada. Me incomoda deveras parte do que se chama “nova MPB” ter ficado com uma cara imutável de música good vibes de elevador. O pau torando na política, fascismo fagocitando o país e o povo cantando vamos viver a vida e sentir o sol no rosto. Catto foge disso lindamente nas suas escolhas musicais. A Gal evocada por Catto é a da contracultura, transgressora por ser autêntica assim como a cantora que agora a homenageia. Ela já vinha flertando com o rock em trabalhos autorais anteriores (fez também uma versão cheia das guitarras de Eva, aquela do sol que não apareceu), mas em Belezas são coisas acesas por dentro tudo me soou como tendo alcançado um novo patamar. Melhor ainda fazer isso mantendo reconhecível a melodia das canções originais. Noise e coisa fina.
O álbum é 10 de 10, pensado no repertório e na cadência, mas ao vivo a experiência é transcendental.
Belezas são coisas acesas por dentro
Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento ♪
Assim diz a canção que dá nome ao álbum. E com esses versos evoco o trecho de “Ela se chama Rodolfo” que encerra a newsletter.
Em torno dos salões de beleza, das manicures, dos centros de depilação, dos cabeleireiros, das lojas de grife, dos quiosques de maquiagem, das revendedoras de catálogo, das redações de revistas femininas, das fotografias de revistas masculinas, das passarelas das semanas de moda, dos estúdios das novelas, das contracapas de jornais, dos outdoors, das vitrines de lojas e das revistas de dieta, circulam os urubus que se alimentam de destroços da autoestima de mulheres. - Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas.
Um abraço e até a próxima,
Eric Novello
já anotei as duas dicas! não conhecia este álbum da catto, que tem uma voz e um repertório incríveis.
Adorei esse álbum e o livro tá na lista. Se esbarrar com ele, pula a fila de leitura. 📖