A lenha na fogueira do identitarismo
A quem serve um militante de esquerda com discurso conservador e reacionário?
*a edição de hoje da ENCRUZA é um desabafo escrito em fluxo de pensamento. perdoem os possíveis erros de revisão.
O retorno da autocrítica
Pois bem. Passada as eleições municipais de 2024 no Brasil vem a fase de se explicar os resultados. Surgem especialistas de todos os lados e para todos os gostos. Dessa vez o foco é expor teorias sobre o resultado muito aquém do esperado por parte da esquerda, espremer a laranja até não restar nem o bagaço. É normal que aconteça. Não apenas para preencher a cota de pautas da ocasião, mas para nossa mídia tradicionalmente alinhada à direita (seja a liberal, a democrática, a extremista, etc.) poder moldar o pensamento sobre quais seriam os motivos dessa derrota. Ouço e acompanho muitos desses jornalistas e consigo ler suas opiniões sabendo exatamente onde está meu ponto de inflexão. Onde ficam as concordâncias e discordâncias. Acho importante como exercício de reflexão e entendimento do que é esse grande campo de batalha (e de um combalido diálogo) chamado política.
Lembro que um tempo atrás, longínquo e ao mesmo tempo recente, a frase esculpida foi: o PT precisa fazer a autocrítica. Quem não escutou essa frase não tinha idade para acompanhar política, porque ela estava por toda parte.
Identitarismo
Daí que decidiram eleger o “identitarismo” como o assunto da vez. E para meu desgosto vi mais “influenciadores de esquerda” falando isso do que jornalistas de direita. Do dicionário Priberam trago uma definição de identitarismo: “Ideologia, política ou movimento que se baseia em fatores de identidade comuns aos elementos de um grupo, como classe social, etnicidade, gênero, orientação sexual, religião, etc.” Quando se ataca o identitarismo existe um direcionamento um pouco mais afunilado a quem fala de direitos e dignidade para pessoas negras, pardas, indígenas, pessoas LGBT+ e de direitos reprodutivos da mulher. O discurso raivoso feito mais às claras, pelos vídeos que assisti, está voltado nesse momento para pessoas LGBT+, principalmente pessoas trans.
O motivo: pessoas trans têm sido o alvo principal dos ataques de políticos de extrema direita quando estes querem criar cortes de vídeos para “lacrar” nas redes sociais. Não deve ser novidade para ninguém que a extrema direita investe na estratégia de criar ameaças imaginárias para se vender como solução. Essa ameaça vai variando com o tempo conforme o interesse. O genérico “a esquerda” vira e mexe volta para essa posição, por exemplo.
É um jogo ainda mais cruel quando pensamos na chacina constante de indígenas em áreas em disputa com fazendeiros e garimpeiros e pessoas negras nas “periferias”, ou de ciganos mais ao norte do país. Ninguém grita o tempo inteiro contra eles como é feito com pessoas trans não porque eles não sejam alvos, mas porque gritar chamaria atenção para essa mortandade constante que já é tida como parte natural do funcionamento da engrenagem do capitalismo brasileiro. É uma violência naturalizada no discurso do desenvolvimento e da segurança pública. Falar do assunto fica nas mãos de quem quer interromper o ciclo de violência. Daí chamam esse “quem” de identitário.
O espanto (por ingenuidade minha, talvez) se deu pelo fato de parte da esquerda estar abraçando esse discurso hipócrita. “Se a extrema direita ganha votos falando mal de um grupo, bora rifar esse grupo de uma vez”, parece ser o pensamento vigente. Incendiar o circo com todo mundo dentro. Pronto, problema resolvido. Se formos todos homens, brancos, cisgênero, heterossexuais, de preferência loiros de olhos azuis nos reproduzindo por masturbação mútua, rapaz, aí sim já era para direita. Vai ser esquerda no poder.
Aparentemente uma travesti rebolar a bunda é capaz de afundar a esquerda em mais de um continente. É todo um novo nível de efeito borboleta.
"Identitarismo" se tornou para a esquerda damarinha o que o "comunismo" vira e mexe é para a direita bitolada. Virou palavra coringa pra destilar preconceito disfarçado de saber político. Entendo a frustração com os resultados. Estamos todos frustrados. Mas embarcar em raciocínio simplista é jogar mais lenha na fogueira que a (extrema) direita acendeu. E aí, quando o fogo sobe, não interessa quem é que está jogando a lenha e encharcando de gasolina, quem queima são as mesmas pessoas de sempre.
Ecochatos e o ecofascismo
Saindo de leve do identitarismo, porque no fim tudo isso anda junto, me vem em mente os “ecochatos”. Quem defendia a preservação do meio ambiente duas décadas atrás era visto como obstáculo ao progresso… inclusive pela esquerda. Belo Monte está aí que não me deixa mentir. E veja onde viemos parar. Se você der uma olhada nas redes sociais da ministra Marina Silva verá que não falta gente de extrema direita discursando na posição de defensores do meio ambiente. É importante olhar para essa ação além da hipocrisia e ver o jogo político mais profundo que é o do tema disputado. O país inteiro pegou fogo pela mão de uns poucos donos de terra, o governo anterior, aquele de extrema direita, liberou a circulação de mais de 2000 agrotóxicos no país, o ouro do garimpo ilegal, banhado de sangue indígena, foi parar na mesa de presidente de certo partido, mas no fundo as pessoas de extrema direita que vão lá na conta da ministra reclamar não estão interessadas em nada disso. Estão interessadas em falar “esse tema é meu”. Um exemplo mais evidente é o que vem acontecendo na Europa com a extrema direita se apossando do tema da defesa do meio ambiente (e indo em museu jogar tinta em quadro) como estratégia para atacar imigrantes. Saiam daqui, imigrantes, vocês afetam nossos ecossistemas. De quebra ainda atacam arte e cultura na mesma jogada.
E, veja bem, não estou falando que TODO MUNDO que reclama na conta da ministra é de extrema direita. Pelamor. Os assuntos por lá variam. Estou falando desse aspecto específico.
Já dizia Sartre, identitário são os outros
Voltando ao identitarismo, li em vídeos de esquerda (pelo menos em teoria, porque em tempos de realidade porosa essas ondas de reflexão podem ser construídas artificialmente) comentários dizendo que LGBT+ são um cavalo de Tróia e frases mais raivosas como “tenho nojo de identitarismo, isso não me representa”, “identitarismo nos divide e joga a gente pra direita”. Rapaz, aqui entre nós, se você realmente pensa assim, deixa eu te contar uma coisa, você já é de direita. E nem está pelo centro do espectro não. Tá lá de mão dada com o povo que anda disputando o capital político do Bolsonaro.
Hoje, pós vitória do Trump sobre a Kamala Harris nos Estados Unidos, leituras parecidas foram lançadas. Chamarem porto-riquenho de lixo, Trump dizer que vai deportar imigrante em massa, atacar direito reprodutivo da mulher, espalhar fake news que promove medo contra imigrantes e tudo que sabemos que ele fala não é visto como identitarismo. A candidata democrata dizer que o país precisa se unir e pensar no futuro é. Assisti a muitos discursos da Kamala e de seu vice e a cobertura feita pelos canais de televisão. Identitarismo não era nem de longe a peça principal. Os discursos são 99% iguais. Ensaiadíssimos. Pode pegar qualquer um e assistir. A estratégia dos democratas era outra. Mas sim, não se eximiram de falar de aborto e de pessoas trans quando necessário.
Na análise de que impacto a eleição dos EUA teria no governo brasileiro e nas próximas eleições veio o mesmo discursinho. “As pessoas estão cansadas de identitarismo e querem pragmatismo”. Em parte é uma reciclagem preguiçosa de argumento para usar palavra-chave que atraia visualizações, mas rapaz, haja paciência. Vamos inverter a lente do discurso rapidinho? Sim, pessoas negras, pardas, indígenas, LGBT+, etc., estão cansadas de servir de alvo para os ataques identitários de quem nos atropela. A gente só quer existir com dignidade sem ter que ficar se defendendo o tempo inteiro. Sem ficar olhando para os lados imaginando de onde virá a próxima piadinha e a próxima agressão. Vamos inverter mais um pouco? O que exatamente estamos chamando de pragmatismo? Pragmático: de ordem prática, sem rodeios, com objetivo definido, sem subterfúgios.
A única análise que achei mais interessante, e que veio lá de fora e não da imprensa brasileira, foi: os democratas consideraram que negros, latinos, indígenas, LGBTs+ votam automaticamente neles. E isso não é verdade. Eles precisam merecer os votos dessas pessoas também. Esta aí uma maneira de tratar o assunto sem gritar “queimem as bruxas”.
Política também se dá no campo da disputa de imaginário. Muito da força dos extremistas veio daí, diga-se de passagem. O próprio Haddad comentou a respeito numa entrevista recente: "Quando você não tem um sonho, um horizonte utópico que guia as pessoas, você tem um horizonte distópico. E a extrema direita é distópica. Os palhaços tomam conta do picadeiro”.
Se não eu, quem vai fazer você feliz?
“Mas, Eric, se ficarmos só no identitarismo não sairemos desse buraco”. Acredite. Todo mundo que está sendo enfiado nesse balaio do identitário sabe disso. Sabe de como os assuntos se entrelaçam, se tangenciam, que não existe esse “só”. O destino de um é partilhado por todos, já dizia o Mestre dos Magos. Respira um minuto, militante, e vira o fogo amigo pra lá. É lógico que precisamos pensar o país em toda a sua complexidade. E debates mais variados, seja em cima de boas propostas ou da falta delas, acontecem o tempo inteiro. Mas sem a mesma visibilidade. Minorias políticas são um alvo fácil. Dia desses esbarrei com uma entrevista do Daniel Craig, o ator que interpretou James Bond, divulgando seu novo filme Queer, em que faz um personagem gay. Uma das perguntas feitas por uma jornalista foi “James Bond poderia ser gay?” De todas as perguntas da entrevista, de tudo que foi comentado, adivinhem qual foi parar nessas contas de “entretenimento e cultura pop” que pululam pelo Instagram? Adivinhem o nível dos comentários? Por fim, adivinhem se gerou engajamento? Já vi um recorte parecido de uma entrevista da Gloria Maria com o Freddie Mercury. Nem preciso dizer que homofobia não foi o único assunto no pacote.
Uma semana atrás a câmara dos deputados rejeitou por 262 votos a 236 a proposta apresentada pelo PSOL de taxação de fortunas acima de 10 milhões de reais. Cadê o barulho dos descontentes? Cadê a revolta com política econômica que estuda corte em programa social e repete o discurso neoliberal? Cadê os vídeos falando do vale-tudo desenvolvimentista que não se incomoda de passar por cima dos nossos ecossistemas? A esquerda tem muito o que pensar e o que não falta é gente fazendo isso com uma preocupação legítima. Gente com a boa vontade de reavivar a esquerda e não com o discurso de enterrá-la com as sete pás de terra do centrão.
É preciso pensar propostas alinhadas à nova mentalidade de um Brasil pós-bolsonarismo. As coisas por aqui mudaram muito e mudaram rápido. Isso num país que nunca foi binário apesar do discurso de polarização. Somos um país em que velhinha reacionária fã de militar defende direito reprodutivo da mulher. E o boy gratiluz que se diz de esquerda não tem nada contra gays, pelo contrário, tem até amigos que são. Mas mesmo dentro dessa complexidade, a solução para esquerda não é deixar de ser esquerda. Equilíbrio se faz pesando a balança para o outro lado.
Embarcar no mesmo discurso da extrema direita de “indústria da lacração”, “agenda woke” e esses parangolés é roubada. (Aliás, nada mais alerta de virjão do que falar “woke” a sério. Para com isso, amigão). Na boa, quem entra nessa não pode rir de quem ia para as ruas gritar “minha bandeira jamais será vermelha” ou fazia dancinha com camisa da seleção. Não aguenta mais o assunto? Redireciona sua frustração, redireciona seu ódio, larga o osso, amplia o debate e vai procurar engajamento em outro lugar.
Um abraço e até a próxima,
Vou deixar aqui a newsletter do Orlando pro debate seguir em frente: https://orlandocalheiros.substack.com/p/a-culpa-e-dos-identitarios
gosto do teu rant estruturado, eric. é bem nessa linha da estupefação que a gente bota um norte e um propósito mais forte nas coisas. eu acrescentaria aí que, muito além do identitarismo e sem excluí-lo desse emaranhado, um suporte com muito mais potencial de unir discursos e práxis é: questões de classe.
eu acredito que o proletariado é talvez uma identidade com o poder real de atravessar muitos contextos e diferenças.
enfim, papo para horas e horas isso (ou textos e textos) ^^