Encruza Criativa Ano 2 #01
Uma edição com Heartstopper, harpias, Alan Moore e inteligência artificial
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Encruzas
Quero aproveitar o aniversário de 1 ano da Encruza para retomar a estrutura em tópicos que eu usava quando a newsletter ainda se chamava “Estranho Mundo de Eric”. Se você está aí desde dessa época levanta a mão pr’eu ver: 🙋🏽♂️ As edições centradas em único assunto como a edição “Os Dez Mandamentos do Horror Queer” e “Os vampiros de Jim Jarmusch e a busca pela arte” continuarão a existir, mas usarei as Encruzas para montar outros quebra-cabeças de ideias. Espero que curtam.
Bora pro primeiro:
a. Assistindo a Heartstopper
Dei uma chorada inesperada assistindo a Heartstopper. Mais precisamente ao último episódio da 2ª temporada quando finalmente abordam a 'anorexia' do Charlie por conta da homofobia que ele enfrentou na escola. Passei por uma experiência similar ao entrar na adolescência. Estava no ensino médio e sofria homofobia na escola (contornada com algum sufoco), no prédio onde morava (essa pesadíssima, só piorou) e dentro de casa. Meu corpo simplesmente não aguentou e meu estômago passou a rejeitar comida. Comer doía. De quinze em quinze dias eu me via no hospital. Na época os diagnósticos não eram muito precisos, imagino eu, e eu demorei a encontrar uma médica que entendesse o que estava acontecendo e me ajudasse a controlar os sintomas. Eu perdi peso de forma assustadora. De mais de 70 fui parar em 54 quilos, nunca pesei tão pouco. Levei cinco anos para voltar a entrar numa piscina sem que a pressão da água afetasse meu estômago. Era esse o nível de sensibilidade. Vinte e cinco anos depois, ainda preciso cuidar da minha alimentação de maneira regrada. E isso tudo estava guardado aqui dentro em algum lugar. Ao ver Charlie e Nick falarem do assunto, Charlie com dificuldade de se abrir e Nick pedindo, por favor, me conta se a sua cabeça for parar em um lugar ruim, simplesmente comecei a chorar. Foi tão repentino que fiquei surpreso com a reação.
Talvez não tenha sido eu chorando. Talvez tenha sido o Eric adolescente, machucado por tudo que aconteceu, se sensibilizando com a cena. Um desses fantasmas de mim mesmo que carrego como companhias afetivas, mas às vezes assombrosas. Charlie, além da anorexia, também se cortava. Nunca me mutilei fisicamente, mas minha cabeça habitou lugares sombrios. Algo comum entre pessoas que estão do lado mais fraco das hierarquias de poder da sociedade. Nem toda cicatriz é visível e essas experiências vão sendo represadas dentro da gente a um preço altíssimo mesmo quando não temos consciência disso. Aquele pedido de desculpas tão esperado nunca vem e cabe a gente seguir em frente como for possível. Fico feliz que séries como Heartstopper existam e que ser um adolescente queer seja uma experiência menos assustadora para alguns atualmente. Ainda há muito a ser feito, mas a situação evoluiu. Hoje já é possível transbordar. Agradeço à arte por isso.
- Heartstopper acompanha a amizade de um grupos de jovens LGBTQIA+ e é baseada nos quadrinhos de Alice Oseman.
b. O Brasil é uma história de horror: Antropoceno e Harpias
Esbarrei com um estudo de 2021 que me entristeceu. 181 harpias foram abatidas em 2 anos no Mato Grosso. 33 delas morreram em retaliação por terem atacado animais domésticos, criações de porcos, galinhas. 148 por curiosidade de gente que queria ver a ave mais de perto e tirar foto. Uma vida ceifada em troca de uma selfie para mostrar para os amigos.
Faço 45 anos em dezembro. Cresci vendo o mundo assustado com um buraco na camada de ozônio. Causa identificada, agiram para fazer algo a respeito. De resto, pouco foi feito. Hoje parece que consideramos o colapso ambiental como parte natural da nossa experiência no planeta. Nos assumimos como agentes destruidores, causadores do antropoceno, e não conseguimos frear a ganância de quem canibaliza o planeta simplesmente como fetiche do seu exercício de poder. A estimativa mais conservadora é de que 200 espécies entrem em extinção a cada ano. Muitas antes de serem conhecidas pela humanidade.
A preocupação com o meio ambiente foi substituída por outro pensamento sem que nos déssemos conta. Na realidade paralela do fascismo, vídeos que registram incêndios e desmatamento são considerados fake news. Projeto de reconstrução da realidade bem executado por quem lucra desmatando áreas equivalentes a dezenas de campos de futebol para plantar soja e criar gado. Os indígenas que tentam protegê-las são assassinados pelo caminho. De repente nos vemos tendo que convencer as pessoas de que uma árvore de pé possui valor por si só. Era para estarmos aumentando as metas de reflorestamento de todos os nossos biomas, mas ainda estamos empacados tentando interromper o desmate e a destruição e vendendo projeto Amazônia para gringo ver.
181 harpias, 2 anos, 1 estado. Um dos animais mais exuberantes do planeta habita o nosso país e é assim que o tratamos. Deveríamos ser guardiões das outras espécies, não predadores covardes.
Essa semana, outubro de 2023, mais de 100 botos e tucuxis foram encontrados mortos no Rio Tefé, no Amazonas. A provável causa é o aumento da temperatura das águas, 10ºC acima do registro habitual para a época. Se não pelo efeito direto nos animais, pelo que acabou proliferando nessas águas mais quentes e os afetou. Mais de 100 indivíduos ceifados de uma só vez.
Existe um Brasil parasítico que se alimenta como um encosto de um Brasil muito mais belo. Belo e possível, é importante lembrar.
- Fotos para ver no Projeto Harpia de preservação da espécie.
c. Literatura e magia
Em todo ato de magia existe um imenso componente linguístico. (…) Acredito que a magia seja arte e que a arte, venha ela do campo da escrita, da música, da escultura ou de qualquer outra área, seja literalmente magia. A arte é, como a magia, a ciência da manipulação de símbolos, palavras ou imagens, para alcançar mudanças na consciência. (…) O ato fundamental da magia é criar algo do nada.
- Alan Moore.
d. Arte, autoria e inteligências artificiais
E após a citação de um dos grandes mestres da narrativa eu me pego pensando no grande truque que foi chamarem de “inteligência artificial” uma ferramenta que rouba o trabalho de artistas, o trabalho disponível na internet e nas redes sociais, e digo rouba porque faz isso sem autorização, depois usa esse conjunto de dados para criar obras derivativas sem que os autores dos originais recebam nada por isso.
Penso também que ao debatermos a qualidade dessas obras (não importa a qualidade, o debate não é sobre o aperfeiçoamento da máquina, é sobre a humanidade da arte, é sobre capitalismo) estamos nos esquecendo de um ponto importante:
Na última década houve a formação de um público cooptado pelo esquema das redes sociais que, no seu consumo hiper acelerado de “conteúdos” de 2 segundos, não chega a criar vínculo com o artista. Esse público aprecia a arte, adora ver um feed cheio de imagens, juntar músicas com fotos, criar seus vídeos em cima de outros vídeos feitos casualmente por terceiros, brincar de recorte e colagem, mas não se interessa necessariamente pelo artista. Se pá vê o artista como um obstáculo entre eles e os produtos de interesse. “Ah, esses artistas gananciosos” e esse papo todo. Acho até que chega a existir um vínculo maior com os personagens do que com as pessoas por trás deles.
A conversa não é exatamente sobre uma ferramenta que pega orientações diretas do usuário e mistura a imagem de um filme com um filtro de estilo chupinhado de um pintor e, no final, cria algo diferente. Não é sobre a ferramenta em si. A disputa é mais ampla. Está no campo da palavra, da magia.
O coelho que sai dessa cartola tem sede de sangue e vem cheio de dedos e dentes fora do lugar.
- Alan Moore fala da importância de lermos livros ruins.
Falando em antropoceno, leia também:
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello
Eu que estou aqui desde o tempo em que o título remetia a Tim Burton (e do qual, confesso, gostava bem mais), adorei rever esse formato de vários tópicos entrelaçados... e ainda não estou sabendo digerir essa notícia das harpias, apesar de já fazer 2 anos! =(
Saudades, Eric! <3
Cada pedacinho dessa news me tocou de um jeito diferente. Ainda digerindo a notícia sobre os botos e tucuxis mortos por conta das águas mais quentes. 148 harpias mortas porque alguém queria chegar perto e tirar foto. E nós também sendo devorados, aos poucos, no processo. A mesma ganância que aparece para mover as máquinas do trecho sobre inteligência artificial. Zeros e uns, é tudo o que vai sobrar no nosso lugar? Ah, obrigada pelo vídeo do Alan Moore. It was INSPOIRING (como ele diria em seu sotaque britânico hahaha).