Encruza Criativa Ano 2 #04
Uma edição com prêmio Jabuti, literatura insólita e esse tal de entretenimento
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O insólito, o entretenimento e o literário
Estamos no ano de 2020. Surge a categoria “romance de entretenimento” no prêmio literário de maior visibilidade do país, o Jabuti. O termo gera certo debate. O que seria o oposto de um romance de entreter? Um de entediar? Qual dos dois seria usado para tratar delinquentes na prisão de Laranja Mecânica? Um romance literário não pode oferecer um bom enredo ao leitor e um romance de entretenimento não pode se valer da forma para contar sua história? Romance de entretenimento teria qualidade inferior ao romance literário? Um é o que vende o outro o que leva prêmios? Um serve para nivelar altura do monitor e o outro de material para tese de mestrado?
Na sua estreia a categoria de entretenimento veio com concorrentes fortes e diversos em suas propostas. Tínhamos livros de uma boa safra de horror, ficção científica, fantasia… Ganhou Raphael Montes com Uma Mulher no Escuro, um romance de suspense que segue a cartilha do “thriller” estadunidense. No mesmo ano Torto Arado, fenômeno comercial de Itamar Vieira Junior, levava na categoria romance literário. Com um forte componente insólito na sua trama, a última parte de Torto Arado é toda narrada do ponto de vista de uma entidade do jarê.
Lembro de na ocasião ler um post falando que o nome “literatura comercial” foi descartado para batizar a nova categoria porque poderia soar ofensivo. Sem entrar no é ou não é, acho engraçado ver que o fenômeno comercial do ano foi justamente Torto Arado, o romance literário. E que o prêmio de entretenimento acabou indo para um livro que é literatura de gênero (aqui entre nós, todos são), mas sem o elemento fantástico.
2021 também foi um ano forte para a categoria de entretenimento. Destaco principalmente a diversidade de editoras a concorrer: Malê, Penalux, Avec, Coerência, Jandaía, Patuá… O vencedor foi Corpos Secos, romance de zumbis da Alfaguara escrito por Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado. Um livro que traz no seu DNA fúngico a proposta de bagunçar as fronteiras entre a escrita literária e a escrita de trama, o tal do entretenimento. Os zumbis concorriam com distopias e até uma space opera, mostrando novamente uma boa abertura do prêmio a diferentes gêneros. Enquanto isso, na categoria romance literário ganhava o irretocável O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Narrado para um homem morto, trata da experiência de horror que é ser negro num país racista e violento como o Brasil.
Chega 2022 e quem leva o Jabuti de entretenimento é a distopia cyberpunk Olhos de Pixel, de Lucas Mota. Publicado no digital pela Plutão é o primeiro vencedor da categoria a apostar pesado em cenas de ação e o primeiro a vir de uma editora independente. Junto a ele na lista de finalistas estavam alguns nomes fortes em vendas, livros afrofuturistas, um jovem adulto narrado por uma casa, livros de suspense e um horror surrealista. No mesmo ano, na categoria de romance literário, ganha O Som do Rugido da Onça, da Micheliny Verunschk, um livro sobrenatural no seu olhar para o passado e que já comentei por aqui.
Mais do que questionar os rótulos, gosto do debate. Gosto de debates que mostrem o quanto essas fronteiras são transponíveis a depender do projeto autoral de cada um. Tanto as fronteiras entre o “literário” e o “entretenimento” quanto as fronteiras entre o “realismo” e o “insólito”. Está tudo aí, junto e misturado, sempre esteve. Vai de cada autor ir moldando sua obra. Às vezes penso que a categoria “literatura de entretenimento” é um tremendo balaio de gato. Cabe de tudo um pouco. Mas as outras também não são assim?
O problema, talvez, estivesse na situação inversa. Se fosse tudo muito fácil de separar, segmentar, classificar, colocar na estante. O balaio, no fim, me parece uma vitória da potência criativa da literatura brasileira.
Tá. Mas prêmios servem para alguma coisa?
Na Linguagem Guilhotina de hoje, Cristhiano Aguiar comenta:
“Os prêmios são muito importantes, porque são um dos principais elementos de movimentação da literatura. Eles viram “assunto”, nem que seja dentro do nosso nicho. Não devemos vê-los somente como algo que interessa ao varejo nu e cru dos livros. Por favor, não vamos praticar esse pseudo-marxismo ressentido de botequim. Concordando com seus resultados ou não, os prêmios contribuem para a renovação dos valores literários e dos seus nomes. Mesmo nos períodos nos quais os prêmios parecem repetir as mesmas figuras, haverá sempre espaço para alguma voz dissonante encontrar um espaço maior.”
Cristhiano Aguiar é autor da coletânea Gótico Nordestino, mais um livro da boa safra que trabalha o insólito com apreço ao literário. No caso em si, um livro que movimenta conversas desde o seu título. Aliás, espero em breve poder conversar com o Cristhiano no podcast da Encruza.
É importante aproveitar o movimento.
E incluiria aí o movimento interno, o movimento de olhar para a própria obra, pensar seu próprio estilo, entender o que se quer da própria escrita, testar caminhos sem medo.
Esse ano ouvi de conhecidos que escrevem literatura insólita (fantasia e ficção científica, no caso), duas perspectivas bem diferentes: o primeiro dizia que seu objetivo era pensar o aspecto comercial da literatura, sem intenção de investir numa prosa mais literária ou em nuances, porque nuances poderiam restringir o público e prejudicar as vendas. O outro dizia estar interessado em refinar sua prosa, experimentar um pouco mais com forma, e chegar inclusive naqueles prêmios que hoje, talvez, ainda torçam o nariz para a literatura de gênero.
Ambos mostravam bastante clareza em seus objetivos. Mas muitos autores de entretenimento ainda ficam à deriva nesse sentido. No meu entendimento, quem vem do lado literário do rolê encontra mais referências, mais material, mais amparo. Já do outro lado da fronteira o estímulo dominante é vender, vender, vender. “Aprenda a escrever seu best-seller”, “dez passos para bombar nas redes ao divulgar seu livro”, “como engajar com fãs de Taylor Swift nas entrevistas”. A chance de se sentir perdido é grande.
Posso estar totalmente equivocado? Claro. Se tiver uma visão diferente, me conta nos comentários.
No fim das contas ainda é muito recente o espaço aberto para determinados tipos de livros nas grandes editoras. E é importante mostrar aos autores e ao ecossistema literário como um todo que o “entretenimento” também permite múltiplas possibilidades. Seja lá o que o termo signifique.
No que tange ao prêmio Jabuti, quero mais é que a categoria de romance de entretenimento perdure e possamos vê-la amadurecer. Olha o tanto de conversas que ela já movimentou? O tanto de editoras pequenas e nomes “novos” que tiveram visibilidade em poucos anos?
Dito isso, torço também para que prêmios voltados à literatura de gênero ganhem mais prestígio e notoriedade (já existem alguns bons por aí). E um dia possamos celebrar nossos Weirdo Awards com a mesma pompa dos Hugos e Nebulas da vida.
Pra não dizer que não falei do mostro
E deixei de fora todo o alarde
Se uma capa fosse feita 100% sem o uso de IA
Pelas mãos de um olavista antivax
Ainda haveria beleza nas suas cores e na sua arte?
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello