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2024 começa com um cacto Astrophytum myriostigma cultivar Onzuka
Senhoras, senhores e proletariado não-binário, eis o mais novo xodó da minha coleção, um Astrophytum myriostigma cultivar Onzuka. Ele foi criado pelo sr. Tsutomu Onzuka no final da década de 1970 na sua estufa no Japão, e demorei a encontrá-lo no Brasil. Desde que soube da sua existência torcia para um dia poder ver um crescer de perto e agora terei a oportunidade. Como importação de plantas de outros países é algo complicado e que beira o proibido (para se evitar importar pragas junto com elas e porque a gente é reizinho da burocracia), o mais comum é criadores importarem sementes e começarem seus próprios plantios, lidando com os desafios de aclimatação. Muitas plantas que incluímos no grupo de “cactos e suculentas” passam por cruzamento e seleção de seus cultivadores para chegar a aparências específicas. Os cactos do gênero Astrophytum como esse da foto possuem uma pá de variedades, mas isso acontece com outras plantas também. Esse eu adquiri do cactário Horst, fácil o mais tradicional e melhor vendedor de cactos e suculentas que conheço. Espero um dia estar aqui compartilhando a primeira floração do meu onzuka com vocês.
Hobbies para manter a sanidade
Desde que me conheço por gente penso em estratégias para exercitar minha criatividade. Escrever literatura e roteiros foi a parte que se tornou comercializável, mas quando mais novo fui muito ligado em desenhos. Ficava copiando até os dedos doerem os desenhos que via em livros de RPG como Vampire, Shadowrun ou Gurps Cyberpunk (sim, eu tentei encarar o sistema do Gurps), mas acabei desistindo pelo caminho por ficar frustrado de só conseguir repetir o que via sem inferir algo mais autoral. Também copiava os desenhos de um quadrinho de humor erótico muito popular nas bancas quando eu tinha meus 14 anos de idade e que trazia um estilo propositalmente genérico para que as pessoas pudessem enviar material para a revista e tentar participar. Meus pais, que encaretaram insuportavelmente com os anos, na época me incentivavam e se divertiam junto. Anos 1990.
A música também fez parte da minha vida. Como minha mãe foi cantora lírica e pianista, pude desde cedo aprender a tocar piano e teclado. Mais tarde aprendi flauta nas duvidosas aulas de música na escola e passei pela fase do violão. Embora não tenha seguido tocando, compus algumas melodias e escrevi letras com minha irmã, que chegou a gravar dois EPs. Às vezes, pensando nessas coisas como agora, me pergunto porque deixei parte disso para trás.
Posso seguir a linha otimista e dizer que minha curiosidade foi me levando a outros lugares. Ou a linha pessimista e dizer que fui criado numa época em que se pensava muito em “especialização”. Especialistas eram mais valorizados do que generalistas. E por entender o valor daquelas coisas mais pelo viés do utilitarismo do que do prazer (era época da hiperinflação, minha família era família de classe média baixa tentando subir na vida, esse tipo de coisa), fui abrindo mão de coisas que me faziam bem. Mesmo o teclado, que pratiquei à exaustão por adorar synth desde muito novo, imagino que hoje não seria capaz de dizer onde fica o dó sem algumas tentativas.
Ainda assim, comecei 2024 com a vontade de gravar um álbum de synth. Deixar pelo menos um pacote de músicas para a posteridade dentro do gênero que mais ouço até hoje. Se David Lynch gravou música, por que não eu? Mas isso é papo para outra hora (e outros orçamentos). O importante é o fio de raciocínio: hobbies que ajudam a expandir a criatividade.
A fotografia entrou mais tarde na minha vida, graças ao avanço das câmeras de celular. Sei que um fotógrafo profissional vai ranger os dentes ao ler isso, mas é uma questão de acessibilidade e praticidade. Não sei se um dia as fotos levarão a algo mais profissional, mas gosto de poder exercitar meu olhar através delas. Existe uma atração pela técnica, mas também pelo exercício de descobrir o que nos toca. Como os cogumelos que venho fotografando em São Paulo. Uma foto que é magnífica para você pode não significar nada para outros. E podemos nos atrair repentinamente por fotos que, quando tiradas, não pareciam grande coisa.
Acho importante que cada um de nós, independente da nossa profissão, mantenha conexão com algo que nos mova criativamente e, de preferência, nos faça bem. A criatividade pode ser perturbadora e a psiquê humana é complexa, mas um hobby deve nos trazer algum tipo de prazer. Mesmo que o hobby venha a nos dar dinheiro é preciso protegê-lo, na sua essência, da lógica de utilitarismo e descarte do capitalismo.
E se alguém perguntar “mas para que isso?”, bem, podemos pensar na evolução da espécie humana desde a descida das árvores e na nossa (por enquanto) inescapável finitude e responder: porque eu quero.
Peixes com ascendente em flor de cactos
O cultivo de cactos e suculentas foi um hobby que comecei depois de me mudar para São Paulo. Como um SimCity da vida real ele me ajuda a organizar os pensamentos e a lembrar, de maneira saudável, que nem tudo está sob meu controle. No Rio de Janeiro quem ocupava esse espaço era o aquarismo de água doce, ao qual me dediquei por quinze anos. Peguei, por sorte, uma época em que o advento da internet permitiu a maior disseminação de informações e elevou o nível do hobby a um novo patamar no Brasil. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, o aquarismo permite controlar todos os parâmetros da água para que possamos oferecer exatamente o que cada peixe precisa. Além disso, nos aproxima da ciência, da química, da física, e ajuda a despertar nossa consciência ambiental e social. Meu “sucesso” foi tanto que cheguei a reproduzir algumas espécies em casa e repassá-las para lojas e tive a oportunidade de acompanhar muitos dos meus peixes crescerem até a velhice. Como esse é um papo longo, deixo a porta aberta como de costume: se quiser saber mais a respeito, me escreva para trocar uma ideia.
Quando chegou o momento de mudar para São Paulo, só de pensar no meu aquário dentro de um caminhão de mudanças pegando horas de estrada, resolvi vender tudo para amigos aquaristas. Como tinha a ilusão de que estava entrando numa época da vida em que viajaria horrores, decidi trocar os aquários por plantas. De preferência plantas que sobrevivessem a um período maior sem rega. Acabou que não pude viajar como pretendia (minha saúde tem seus altos e baixos), mas me apaixonei totalmente por cactos e suculentas e segui com eles desde então.
Ter um ser vivo sob seus cuidados, por menor que ele seja, é algo que nos transforma. E plantas são cheias de surpresas.
Quinze anos de São Paulo se passaram e o aquarismo evoluiu horrores. Hoje existem dezenas e dezenas de novos peixes encantando o mundo. Infelizmente o Brasil desistiu de investir nesse mercado (tivemos políticas para isso lá no Lula 1) e as novidades que a América Latina gera acabam aparecendo primeiro é nos aquários da Europa e da Ásia. De qualquer modo, tenho começado a me encantar novamente pelo aquarismo. Especialmente pelo aquapaisagismo, que dá atenção especial às plantas do aquário.
Aliás, em 2023 um brasileiro ficou em quinto lugar no concurso de aquapaisagismo mais importante do mundo. Um cara que trabalha numa loja aqui de São Paulo chamada Fazenda Submersa. Um feito e tanto. Assim como a vontade de gravar um álbum de synth, voltar ao aquarismo depende de grana porque tudo ficou ainda mais caro nesse país de 2018 pra cá. Então vou deixar a ideia rodando no background das sinapses e decidir mais adiante se é possível ou não esse retorno.
Abaixo vocês veem o Pandora, o aquário do Carlos Souza, premiado no concurso. Sim, é inspirador bagarai.
(aqui a lista com os demais)
A outra newsletter
Por conta de todo o bafafá sobre na’zismo aqui no Substack, preparei uma edição revista e ampliada da minha newsletter sobre Arte Degenerada. Mas não queria começar o ano com algo tão pesado, mesmo sendo um texto cheio de referências legais de arte. Então decidi começar com a leveza de um hobby. Mas be aware, criatura da noite, qualquer hora deve chegar até você um texto sombrio sobre arte.
Falando em hobby, eu faço sites
Sou da geração que viu a internet nascer e acompanhou o fenômeno dos blogs. Blogs esses que ajudaram a revelar autores como Daniel Galera e Ana Paula Maia. Antes mesmo de publicar meu primeiro livro eu já curtia montar meus próprios sites. Acho que muita gente fez isso e largou de mão. Ao contrário do que fiz com os desenhos, acabei mantendo a prática.
Na virada de ano aproveitei para reformular meu site do zero. Já tinha um tempo que eu queria que ele começasse a fazer parte do meu projeto artístico em vez de ser só um endereço com informações e links de venda. Só no fim de 2023, começo de 2024, já mais conectado com a fotografia, me veio o clique de que caminho seguir.
Não deixe de passar por lá qualquer hora dessas. Coloquei uma biografia bem completa e pela primeira vez évá estou reunindo TUDO que já produzi de romances, contos, roteiros e música num lugar só. Tem coisa que nem eu lembro, então é work in progress. Ainda falta arrumar detalhes de blog e de navegação por celular, mas num geral está funcional. Novos conteúdos virão.
Então, sob a proteção dos bonecos de pano Marafo e Calunga, ei-lo aberto para os visitantes: ericnovello.com
Falando em blog, vou aos poucos levar os textos sobre arte e sobre horror queer para o site. A newsletter é um meio prático e dinâmico da gente conversar, mas os últimos dias me lembraram de que é importante cuidar desse conteúdo de formas mais próximas também. Repassar esse material para o site também vai me ajudar a arejar as ideias para montar a oficina de escrita de horror queer que está nos planos para o futuro.
Na próxima edição voltamos a falar de literatura. Ou de fotos. De gatos. De peixes. De cinema. De teatro. De cactos. De música. De terror. De romance novo…
Sempre lembrando, a caixa de comentários do Substack está aberta procês. Os mais reservados podem me alcançar por e-mail e até no purgatório do Instagram.
Ah, por último mas não menos importante, entre a última edição de 2023 e esta primeira edição de 2024 eu completei 45 anos. Parabéns para mim e sejam bem-vindos à festa do meio do caminho.
Um abraço
e até a próxima encruza,
Eric Novello
Cara, é muito louco ver como os hobbies meio que seguram nossa mão e impedem que a gente seja engolido na correria da rotina. Desde 2012, quando comecei a graduação, foram eles que me impediram de surtar (mais) no meio do ritmo acelerado da graduação. E de lá pra cá, não mudou. Por mais que eu ame o meu trabalho, o momento no fim do dia quando me desligo e vou assistir séries, jogar alguma coisa ou mesmo os fim de semana que vou cuidar das minhas plantas, recarregam a minha energia e me ajudam a recomeçar a semana com tudo.
Adorei a newsletter e vida longa ao hobbies não comercializáveis! ^^
Parabéns pra você e obrigada pelas coisas que você traz pro mundo! E nossa, jamais imaginaria o hobby dos aquários. Mas é tão interessante. Acho que nesse mundo tão capitalista e utilitarista, descobrir o hobby de alguém é quase uma janela pra um mundo interior que a gente talvez não veja muitas vezes. Tudo é tão regido pela ideia de ganhar dinheiro, e um hobby é aquela coisa em que você decide que vai "só gastar" os frutos do seu suor. Um respiro na loucura, como diz aquele poeta né