A escassez de tempo
Ainda lembro da época da faculdade em que conseguia passar horas deitado na cama lendo um bom livro, estudar para as provas, fazer algum exercício (eu amava musculação), cuidar do meu aquário de 200 litros, sair com os amigos, ter vida social, jogar Civilization e X-COM, virar a noite nos chats e bares gays, ajudar com a casa… e ainda sobrava tempo.
Não sei o que aconteceu exatamente. Talvez seja apenas a vida adulta misturada a um país que te põe pra trabalhar 24x7 para ter alguma dignidade financeira, mas o tempo me parece um recurso cada vez mais escasso. E sei que não estou sozinho nessa.
O tempo sumiu. Já era. Nessas horas, quando o desespero começa a fazer a dança do Pennywise na minha cabeça, me lembro dos versos do Minor Majority na música Wish You’d Hold That Smile.
We don’t need more time
We need to use it right.
Não precisamos de mais tempo, precisamos usá-lo direito. Sem deixar de dormir, veja bem!
Se você é uma daquelas pessoas cínicas que pensou imediatamente “rá, muito fácil falar, você não tem isso, não tem aquilo, não tem aquilo outro pra cuidar”… Parabéns, você acaba de tornar a pólvora obsoleta. Sim, é sempre mais fácil falar. Tomar a atitude é que são elas.
Como ando comprometido com a escrita do livro novo e quero finalmente retomar minha rotina de exercícios pós-pandemia, andei fazendo alguns ajustes no meu uso de tempo. Decretei um hiato por tempo indefinido no Twitter, e ando entrando no Instagram só para ver as contas de cactos e suculentas (sou colecionador) e de receitas veganas (sou vegetariano tentando largar o consumo de queijo). Minha relação com essas redes sociais não era saudável, então parti para uma mudança radical. Spoiler: tem sido ótimo.
Esse ajuste no uso do meu tempo levou a outra mudança. Até então eu costumava ter metas de leitura e metas de filmes. Acho importante se alimentar de cultura, não importa sua área de atuação. Cultura liberta. Cultura renova nosso olhar. Além disso, consumir e estudar narrativas é fundamental para quem escreve. Se um dia conhecer um escritor que diz que não lê, ria na cara dessa pessoa por mim, por favor.
A discussão sobre ter metas de leitura é meio acalorada, o que acho meio tosco e tempo perdido, mas explico meu motivo: se eu percebia que as metas estavam atrasadas, eu me perguntava: é porque você está usando esse tempo com coisas legais, viajando, escrevendo, vendo os amigos, ou é porque você está exaurindo seus neurônios nas redes sociais?
Com a redução e agora o corte radical do meu uso de redes, resolvi aposentar as metas. No lugar delas estabeleci o que chamo de Guia de Leituras (obrigado Ana, do Ana Está Lendo, pela sugestão de nome). Com o guia, posso não ter meta, alcançar a meta e ainda dobrar a meta sem nem saber que meta é essa.
Guia de Leituras do Mochileiro das Galáxias
Montar uma lista de possíveis leituras a cada início de ano é um dos meus ritos favoritos. O guia de leituras fica uma mistura de livros (e quadrinhos) parados na estante e no e-reader com outros que despertaram minha curiosidade e estão na lista de compras só esperando uma boa promoção para serem adquiridos, mais alguns que ainda nem tem nome ou capa, mas sei que serão lançados no ano vindouro. Depois dessa rodada de escolhas, avalio se consegui manter a bibliodiversidade. Em outras palavras, se escolhi livros que não sejam só de homem branco heterocis, ou não sejam apenas literatura estadunidense, ou não sejam todos de uma única editora. Esse rolê.
O guia, como o nome sugere, não é uma obrigação. Ninguém perde pontos se não cumprir o guia ou trapacear de leve a lista. Trapacear, inclusive, é parte do charme. Outra: conforme vou lendo os livros autossugeridos, tenho por hábito acrescentar novos títulos no lugar, manter a lista sempre cheia de opções. O objetivo não é zerar os títulos.
Nos primeiros anos montando meu guia, admito, falhei miseravelmente em ler o que estava nele. Ficou mais para lista de proibidões do que um guia, tamanho o fiasco. Mas com o tempo fui ficando cada vez mais competente em seguir a lista. O segredo? Ser honesto com as escolhas e incluir títulos que eu realmente gostaria de ler.
Caso você se empolgue com a ideia e queira montar um Guia de Leituras, nessa edição trago seis sugestões de literatura brasileira e literatura latino-americana que estão no meu guia de 2023:
Sina, de Marcio Benjamin (ed. Darkside) - Minha leitura do momento, estou curtindo demais. Zé Trancoso está em viagem quando seu carro pifa pelo caminho. Em busca de ajuda, sol quente na cabeça, ele encontra três senhoras cegas no meio do nada protegendo a entrada de uma cidadezinha. Para convencê-las a entrar, ele se oferece para contar algumas histórias. E isso é só o começo da saga de Zé nesse romance montado a partir de contos dentro de contos dentro de contos. Mais sobre o livro no blog da editora.
Sou uma tola por te querer, de Camila Sosa Villada (ed. Tusquets) - A autora argentina fez um barulhinho bom com seu romance “O Parque das irmãs magníficas” e com sua passagem pela FLIP. Neste livro, reúne contos que ignoram os limites entre a realidade e o insólito e vão desde um passeio pela “Inquisição mexicana até um universo distópico em que a existência travesti se tornou sua mais forte vingança”. Só vai.
“Meu primeiro ato oficial de travestismo foi escrever, antes de sair na rua vestida de mulher” - Camila Sosa Villada
Olhos de pixel, de Lucas Mota (ed. Plutão) - publicado em ebook, foi vencedor do prêmio Jabuti 2022, categoria literatura de entretenimento. Ambientada numa Curitiba cyberpunk, a história acompanha Nina Santelles, uma mercenária queer que com a ajuda de um aliado inesperado tentará derrubar uma corporação religiosa deveras corrupta e controladora (a gente até imagina a carinha do dono, né não?). É o próximo da fila.
Calunga, de Jorge de Lima (ed. Alfaguara) - Depois de Invenção de Orfeu e Poemas Negros, chegou a vez da Alfaguara reeditar Calunga. Publicado originalmente em 1935, mostra através de uma ficção o assombro do autor, também médico, com o que viu no interior alagoano. Na história: Lula Bernardo, depois de viver na capital, volta para o interior com o intuito de levar modernidades à região e à sua família. Para realizar o sonho ele precisará peitar um coronel que lucra com a miséria e o atraso.
Tenebra: narrativas brasileiras de horror [1839-1899] (ed. Fósforo) - Júlio França e Oscar Nestarez compilaram 27 narrativas de horror escritas ao longo de 70 anos para mostrar que nem só de romantismo viveu a literatura brasileira no século XIX. Habemus gótico! Entre os autores pinçados para dentro da caixinha tenebrosa estão Machado de Assis, Olavo Bilac, Júlia Lopes de Almeida e Aluísio Azevedo. De cometas apocalípticos a crimes conjugais, a seleta promete uma boa variedade de temas e resgate de nomes que sofreram apagamento ao longo do tempo.
Temporada de Furacões, de Fernanda Melchor (ed. Mundaréu) - A Mundaréu acaba de publicar Páradais, livro mais recente da autora mexicana. Mas por aqui eu vou com seu lançamento anterior - elogiadíssimo, diga-se de passagem - me meter no olho do furação. Na história, garotos encontram um corpo boiando na água. É a bruxa de La Matosa. Para desvendar o crime, a autora monta um quebra-cabeça de relatos que é também uma investigação de dinâmicas de machismo e preconceito. Cheguei a começar a leitura ano passado, estava gostado muito, mas me enrolei e deixei a dita de canto. De 2023 não passa.
Para ver a lista completa basta visitar meu Guia de Leituras 2023 no Goodreads. Só não esquece de que ele é dinâmico e vai mudando conforme vou fazendo as leituras. Os lidos somem, novos títulos aparecem.
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Nós artistas e a arte degenerada - encruza falando de um tal de Hitler e a perseguição de artistas por governos autoritários.
Ficção científica vence o Jabuti - podcast Curta Ficção entrevista o escritor Lucas Mota.
LiteraTamy entrevista Camila Sosa Villada e aborda o fantástico na obra da autora.
Do
, a série Viralismo. Sobre a bizarrice de se ver como criador de conteúdo 24x7 e com isso transformar sua subjetividade e até morte de parente em chances de viralizar.
Nunca consigo seguir uma meta de leitura também ^^' sempre acabava "furando" a fila. Desde novembro, por aí, quando ganhei uma coleção da Isabel Allende, venho tentando não apenas retomar um hábito saudável de leitura (de ir lendo aos poucos, não por obrigação ou por conta de um hiperfoco aleatório). Mas sinto que tá mais para um guia do que uma meta do tipo esse livro TENHO que ler esse mês. Vou escolhendo a próxima leitura de acordo com a que mais me cativar no momento, o importante é só continuar lendo <3
adorei essa edição da news e a reflexão que ela trás sobre o tempo <3
"O objetivo não é zerar os títulos."
Foi uma frase tão pequena, mas me fez pensar bastante. Geralmente as metas de leituras funcionam no sentido contrário, né? Quase uma contagem regressiva como se os livros fossem obstáculos que precisam ser removidos para alcançar um lugar elevado. Isso não faz nenhum sentido, já que o foco deveria ser no caminho. Não tem uma linha de chegada.
Adorei a reflexão e vou tentar pensar mais em um guia de leitura em vez de meta.