Leonora Carrington, a última grande surrealista
Pintora, escultora, escritora, uma artista que recusou o papel de musa
“Certas coisas são indizíveis. Por isso temos a arte”
- Leonora Carrington.
ARTE: Leonora e o leilão das distrações
Maio de 2024. O quadro Las distracciones de Dagoberto, tela de Leonora Carrington, é arrematado num leilão por 28,4 milhões de dólares, um recorde para a artista. Em reais daria 142 milhões na cotação de 1:5. Foi um preço mais alto do que qualquer quadro de Salvador Dalí já alcançou, embora Dalí seja um nome mais corriqueiro nas conversas sobre surrealismo. Não que a gente se importe com números, é claro.
Eu bem que tentei juntar as moedas para fazer meu lance, mas como não consegui alcançar o valor, me contento com as tatuagens que carrego inspiradas pela obra da artista e personalizadas pela tatuadora Thais Gallo.
Leonora Carrington teve uma vida conturbada. Fã do surrealista alemão Max Ernst, se relacionou e morou com ele até Ernst ser preso pelos franceses por ser alemão e, portanto, considerado pessoa suspeita. Pouco depois de ser libertado, a Alemanha invadiu a França e Ernst precisou dar no pé, já que os nazistas viam no surrealismo uma forma de arte degenerada. A prisão de Ernst deixou Leonora um bagaço emocional. Quando Ernst se mandou para os EUA, Leonora se viu sozinha e um tanto perdida. Morria de medo do que os nazistas poderiam fazer com ela. Antes de se acomodar no México, passou em fuga por vários países. Chegou inclusive a ser internada num manicômio na Espanha, contra sua vontade, cortesia do seu pai que não curtia as rebeldias da filha. Uma história escabrosa. O relato sobre o ocorrido pode ser lido na autobiografia “Down Below”.
Após passar por tratamento de eletrochoque e tomar remédios que causavam convulsão, Leonora enganou a família e a enfermeira e conseguiu escapar, enfim se exilando no México.
Down Below é também um quadro no qual, encorajada pelo escritor André Breton, Leonora externaliza sua experiência no sanatório. Máscaras sobre máscaras, seres zoomórficos e andróginos, nudez, esses são alguns dos elementos marcantes.
Além dos quadros, a artista criou também esculturas, peças de teatro e histórias de ficção, algumas já publicadas no Brasil. Sua coleção de arcanos maiores, pintados para servirem de tarot pessoal, se popularizou recentemente e ganhou uma nova edição pela Fulgur Press. Caso você esteja pensando em me dar um presente, fica aí a dica.
Foram as notícias da ocasião da morte de Leonora em 2011 que me atraíram para seu trabalho, acredito eu. Pessoa reservada, era defensora da vida dos animais e não comia carne, era apaixonada pelo oculto e pelo desconhecido, fã de histórias de investigação (que chamava de horror comics), e se aproximou do surrealismo por ver no movimento algo parecido com o que já produzia. Ao transitar entre os surrealistas, porém, percebeu que a maioria deles resumia as mulheres ao papel de musa ou de femme-enfant (que é um termo bem escroto, vamos combinar).
“Eu não tinha tempo para ser a musa de ninguém. Estava muito ocupada me rebelando contra minha família e aprendendo a ser uma arista”, disse Leonora numa das suas entrevistas.
A figura do feminino, não por acaso, é um tema recorrente em sua arte. Representar-se é assumir o controle da própria imagem. Seu quadro mais simbólico para a questão é um autorretrato no qual a artista se representa de maneira andrógina, sentada em uma cadeira, estendendo a mão para uma hiena, que faz o mesmo para ela.
Fêmeas de hienas, fica aí a curiosidade, possuem clitóris maiores que os pênis dos machos. Esse clitóris são totalmente funcionais, ficam eretos e são usados para urinar e procriar. Elas vivem em sociedades matriarcais tendo uma fêmea alfa como líder. A liderança é passada para suas crias. Machos sofrem para se integrar ao bando, conseguir comida e copular. A maneira como a cópula acontece eu deixo para a imaginação de vocês.
Num de seus contos mais famosos Leonora Carrington também traz uma hiena como personagem. Nele uma jovem fica amiga de uma hiena e conta para ela que não gosta da maneira rígida como a família a trata. Confessa também que está ansiosa por conta da festa que a mãe está organizando para ela. A hiena então propõe um acordo: se a jovem conseguir tirá-la do zoológico, a hiena irá na festa no lugar dela. Para isso precisam pensar num modo de fazer com que as pessoas não percebam que é uma hiena, e não uma humana, que está na festa. Gosto de pensar o quadro como um reencontro no campo do imaginário.
“O surrealismo não era um movimento político. Foram os nazis que começaram a nos perseguir. Minha passagem pela Espanha, Portugal, Estados Unidos e por fim o México é uma consequência dessa perseguição. Éramos fundamentalmente antifascistas” - Leonora Carrington.
No trabalho de Leonora o uso do inconsciente e do onírico que norteiam o surrealismo se uniram a influências muito particulares, como a arte da América Central e, em maior destaque, seu encanto pelas lendas celtas. O feminismo se mostra um ecofeminismo. Ao explorar a identidade como um valor livre do corpo e aberto à transformação, a artista amplia nossos caminhos e propõe um bestiário de encher os olhos.
Nascida no Reino Unido, Leonora morreu no México aos 94 anos. “Morre a última grande surrealista”, disseram os jornais na ocasião.
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Comecei a escrever essa edição por conta do leilão do quadro As distrações de Dagoberto, mas foi só ao montar a edição anterior sobre Henrique do Valle que me veio a chave para terminar o texto. Não sou muito de encaixar didaticamente todas as peças dentro das newsletters porque essa frouxidão é algo que me move também na ficção e, acredito eu, permite que você, leitor, encontre seus próprios encaixes e assim possamos estabelecer um diálogo de igual para igual. Mas as peças, pode ter certeza, são escolhidas de maneira criteriosa.
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Um abraço e até a próxima,
Eric Novello
já devem ter te perguntado se tu leu a corneta, mas assim, acho q tu ia gostar hehe
amei a edição! a Lenora, junto com o Magritte, é minha surrealista favorita.
Conheci essa querida no curso Mulheres Artistas na História da Arte, da Izabel Carvalho. Suas imagens são muito inspiradoras e gostei de conhecer mais de sua história aqui. 💓