Tom na Fazenda
Nosso passeio neste Dia do Orgulho LGBTQIA+ começa com Tom. Na peça do canadense Michel Marc Bouchard, com texto adaptado para o português pelo ator e produtor Armando Babaioff, Tom, um jovem gay, decide ir ao funeral do seu ex-namorado que morreu num acidente de trânsito. Ao chegar na fazenda da família do morto onde acontecerá o funeral e se deparar com a mãe do ex ele percebe que sua existência sempre foi um segredo. A mãe nunca ouviu falar de Tom. Mais ainda, a mãe não faz a menor ideia de que seu filho se relacionasse com homens. Abalado pelo choque, Tom decide atender a um pedido da mulher: que ele passe a noite na fazenda e, no dia seguinte, fale algumas palavras bonitas durante o velório para as pessoas da região saberem que o filho dela foi um homem bom.
Tom acaba indo dormir no quarto do ex. Mas enquanto Tom se lamuria e tenta pegar no sono, outra surpresa se sucede. Seu falecido namorado tinha um irmão de quem nunca comentou. Um brucutu paranoico, violento e homofóbico chamado Francis que invade o quarto de Tom e o ameaça prensando-o contra a cama: Eu sei quem você é. Se você abrir a boca e contar algo pra minha mãe, eu te mato.
A partir daí relações complexas vão se desenvolvendo. Tom vê no sujeito violento algo que o lembra do namorado e que o ajuda a lidar com a mistura de luto, rejeição e raiva que está sentindo. Uma situação que me remeteu ao despertar do desejo queer, quando muitas vezes as pessoas que desejamos são justamente aquelas que em breve se voltarão contra nós. Já Francis vê em Tom uma segunda chance de conviver com o irmão morto que foi viver na cidade para fugir dele, e impõe ao visitante uma rotina brutal de resiliência que, na cabeça dele, demonstra algum tipo de afeto.
Tom na Fazenda nos mostra um jogo perigoso, violento, explosivo, construído inteiramente numa zona cinzenta de caráter. Ainda bem. Seu cenário minimalista coberto por barro, água e lama, um artifício cênico criado pela montagem brasileira, respinga também na plateia, testemunha desse jogo. É uma lama real e metafórica que vai cobrindo Tom e Francis ao longo de suas interações. Subindo por suas roupas e corpos. Mesmo com a complexidade de temas e personalidades, o texto de Bouchard adaptado por Armando Babaioff e a direção de Rodrigo Portella são certeiros. Ao final da apresentação temos minutos ininterruptos de aplausos, atores emocionalmente esgotados e uma plateia agraciada por uma experiência sem igual.
Ser Queer é uma experiência de horror
Para muitos de nós descobrir-se LGBTQIA+ é uma experiência de horror. Somos como vampiros disfarçados entre os meros mortais. Seguros enquanto conseguimos proteger nosso segredo, perseguidos se revelamos nossa peculiaridade. Para sobreviver, nos partimos em duas identidades. A pública e a privada. A diurna e a noturna. Contudo, ao contrário dos vampiros, os anos roubados pelo ódio alheio jamais nos são devolvidos. A imortalidade é para poucos.
Uma busca no Google levará você a bons textos comentando o cinema de horror Hollywoodiano e seu intrínseco subtexto queer, fruto da repressão que os diretores e roteiristas sofriam e que os levava a questionar seus próprios desejos. A maneira de expressar suas dúvidas ou exercer sua liberdade foi codificar essas questões nas entrelinhas das histórias, o único jeito de passar batido pela censura dos estúdios e produtores.
Na seara da literatura, Bram Stoker foi alguém próximo de Oscar Wilde, e escreveu Drácula após o “amigo” ser perseguido e condenado por seus desejos. Cartas de Mary Shelley indicam sua atração por mulheres após a morte do marido. Frankenstein é um monstro incompreendido e perseguido, enquanto seu criador cometeu o pecado de “gerar vida”, algo que comumente é lido como querer ser Deus, mas também pode ser lido pelo viés de um homem que assume o papel atribuído então à mulher. E ainda nem falamos de Carmilla ou A Filha de Drácula… Ou do ícone gay Clive Barker e clássicos como Candyman, Hellraiser e seus Livros de Sangue.
Mary Shelley e Bram Stoker, se vivos, talvez tivessem boas histórias para dividir numa mesa de bar. Mas o importante aqui não é quem eles foram e sim o que o horror, um gênero nascido sob forte influência queer, pode fazer hoje por nós na luta contra a higienização das narrativas e de nossas identidades.
Um roteiro de horror queer
Nos últimos meses venho me dedicando a um roteiro de HQ de horror queer. Cheguei a escrever um bocado de páginas dele como romance e decidi que preferia contar a história na forma de quadrinhos. Por conta das suas paisagens exuberantes e elementos insólitos? Sim! Mas também por conta dos personagens queer que vivem a verdade de seus corpos e de sua sexualidade. Personagens bons e ruins, heroicos e condenáveis. Eu não queria só as palavras, eu queria as imagens nessa batalha pelo imaginário. Queria a cena do beijo, do sexo, do corpo que goza, do corpo que apanha, do corpo que sofre. E isso me deu um friozinho na barriga bom e ruim.
Bom por estar fazendo algo novo depois de 20 anos de prosa. Ruim por me preocupar com as consequências. Será que vão querer publicar? Será que vão me mandar cortar coisas? Quantos centímetros a menos de exposição para ser aceito pela família tradicional brasileira? E ao me perceber imerso nesse questionamento meio patético o que senti foi raiva. Porque eu não teria essas dúvidas se estivesse escrevendo uma cena de sexo heterossexual entre personagens cisgênero. De repente o Eric de 2023 virou o Eric de 2013 procurando editora para publicar seu Exorcismos, Amores e Uma Dose de Blues com um protagonista bissexual que transa e ouvindo que não chegaria às grandes editoras com um texto assim.
Para deixar a noia de lado, resolvi reler uma edição antiga da newsletter na qual elenquei os desmandamentos do horror queer. Nisso, entendi que era hora de trazê-la de volta numa nova versão, revista e vitaminada, para o dia do orgulho. Ver Tom na Fazenda foi o empurrãozinho que eu precisava.
Sem mais delongas então…
Os desmandamentos do horror queer
A narrativa insólita - e nisso incluo o horror - é uma forma de desobediência. Não tenha medo de desobedecer às normas, inclusive as normas da realidade.
Abrace o estranho como parte de si mesmo. Seja heroico e seja monstruoso. Explore as possibilidades entre os dois com suas tramas e personagens. Escreva Tom e escreva Francis.
Não escreva para ser aceito pelos grupos que desprezam você, escreva para ser livre. É danoso perseguir uma higienização que não contempla nossa complexidade. Liberte-se da necessidade de agradar quem te oprime.
O horror queer não precisa ser escrito somente para pessoas queer. Recusamos qualquer tipo de gaveta como um dia recusamos o armário da invisibilidade e abraçamos todos os públicos interessados em nossas histórias.
O horror queer encontra nas brechas classificatórias as ferramentas para torcer definições de gênero conforme sua vontade. Dentro e fora da literatura, gênero é performance e contém em si seu próprio impulso transgressor.
Tenha cuidado para não replicar preconceitos contra si e contra os outros. Nossas histórias são plurais. Contamos com diversos atravessamentos e diferentes trajetórias.
Permita-se ser imperfeito. Permita que seus personagens tenham defeitos, sejam amorais, contraditórios. Empurre de volta os limites impostos por uma sociedade normativa. Não é uma questão de fugir de uma história romântica com final feliz, mas de não buscar esse tipo de história apenas por sua “passabilidade”.
O horror é sim um campo válido para explorar nossos medos, dilemas e traumas. Seja ao escolher os vilões das nossas histórias, seja ao refletir sobre problemas internos da própria comunidade LGBTQI+, seja para falar do nosso processo de autoaceitação ou algo completamente diferente disso, tudo é permitido.
O horror queer não precisa ser necessariamente escrito por pessoas queer. Digo isso porque o processo de entendimento de nossas identidades é uma busca contínua e muitos de nós ainda não se sentem seguros para expor suas verdades. Cuidado para não arrancar alguém do armário e também para não condenar alguém ao armário.
Queer é um espaço de exploração de áreas cinzentas, de campos marginais e limiares. Ser categorizado vai contra a identidade queer. Enquanto estamos aqui tentando defini-lo, o insólito queer já nos escapou e se transformou.
Entre sonhos e pesadelos
Mais uma vez escolho encerrar a newsletter sobre Horror Queer com um trecho extraído do livro Na Casa dos Sonhos, de Carmen Maria Machado. Nesse livro autobiográfico a autora narra sua entrada e saída de um relacionamento abusivo com outra mulher e reflete sobre personagens queer na literatura.
Não é incorreto dizer a um artista que há uma responsabilidade embutida na escolha de quem serão os vilões da narrativa, mas também não se trata de uma discussão simples.
Na verdade, vilões queer se tornam muito mais interessantes quando há outros personagens gays, tanto dentro de um projeto ou universo específico quanto do zeitgeist como um todo. Eles se tornam uma estrela numa constelação maior, ganham contexto.
E isso é bem empolgante, até libertador. Ao expandir a representação, abrimos espaço para que indivíduos queer sejam - enquanto personagens, enquanto pessoas reais - seres humanos. Não precisam ser metáforas para a perversidade e a depravação nem ícones da submissão e da docilidade. Podem ser o que são. Nós merecemos que nossas transgressões sejam representadas tanto quanto nosso heroísmo. Porque, quando negamos a um grupo a possibilidade de transgressão, estamos lhe negando a humanidade.
Indivíduos queer, os da vida real, não merecem representação, proteção e direitos por serem moralmente puros ou respeitáveis como grupo. Merecem tais coisas porque são seres humanos e isso basta.
- Na Casa dos Sonhos, Carmen Maria Machado.
Com o tanto de conservadorismo que vem se infiltrando na comunidade queer, com gente apontando o dedo para fetiches alheios, adotando discursos transfóbicos, falando mal de obras de ficção por terem cenas de sexo, sensualidade ou simplesmente uma abordagem mais firme da sexualidade dos seus personagens, é revigorante saber que o horror queer está aí - seja ele insólito ou não - para nos lembrar do nosso direito, como pessoas e como autores e artistas, de subverter e transgredir. Esse espaço também é nosso. Sigamos sem medo.
E se curtiu a newsletter, não esqueça de deixar um comentário e conhecer o Apoia-se da Encruza Criativa. O autor agradece.
Pós-Encruza:
Em 2022 conversei com Ivan Mizanzuk (O caso Evandro) sobre o que seria esse tal de horror queer, um pensamento sempre em evolução.
Um abraço,
até a próxima
e a gente se lê.
Eric, experimentar, existir e reverberar como alguém queer, diante de tantas normatividades controladoras e encarceradoras, já é um cotidiano de terror. Diante dos assombros, tendo a acreditar que na estética do terror além da identificação role uma contemplação e quase vingança.
Um ano depois da publicação de seu texto venho aqui lê-lo e comentá-lo… e também perguntar: como anda a HQ? 🫶🏼
"Uma situação que me remeteu ao despertar do desejo queer, quando muitas vezes as pessoas que desejamos são justamente aquelas que em breve se voltarão contra nós."
Antes de realmente me entender e aceitar como gay, ainda criança/adolescente, tive um vizinho que me xingava de tudo sempre que me via. Ele lia minha expressão de gênero como pouco masculina, creio eu, e se valia disso para despejar doses cavalares de homofobia e desprezo sobre mim. Lembro que muitas vezes pensei em oferecer a ele favores sexuais em troca de ele parar com esses ataques – eu não me sentia atraído por ele, mas sabia que havia algum poder envolvido na sexualidade.
Recordei disso lendo teu texto e fiquei aqui remexido pensando, além de ter curtido a leitura como um todo. Obrigado :)