O desejo é livre no seu voo noturno
Vampiros me ensinaram uma coisa ou duas sobre desejo queer quando a internet ainda não era um portal para os segredos do universo. Quando eu era novo demais para saber que existiam outros gays a um barzinho de distância, que eles não estavam congelados nas capas de revista ainda exibidas na parte externa das bancas de jornal sem qualquer tipo de censura. A fome do vampiro não conhecia os limites da moral careta e conservadora. O vampiro mordia homens e mulheres, mordia peles de todas as cores, atravessava a carne tenra de tesão com dentes pontiagudos carregados de fome mesmo quando essa fome vinha acompanhada de culpa. No mundo dos vampiros, as performances de gênero eram assumidas como tal e não como uma hierarquização de identidades. Os vampiros sabiam que quando alguém vive intensamente sua verdade, o desejo se torna livre no seu voo noturno.
Trocamos algumas ideias a respeito na edição anterior:
Mas o desejo vampiresco desta edição da Encruza surge num sentido mais abrangente, surge da necessidade de, artistas ou não, renovarmos nosso interesse pela vida, mesmo quando LGBTfobia e preconceitos diversos, renascimento do fascismo, crise global do capitalismo, pandemia, emergência climática e guerras eternas atacam ininterruptamente as fundações do nosso pertencimento.
Um movimento sutil de pescoço
Em Only Lovers Left Alive, filme de Jim Jarmusch que no Brasil se chamou Amantes Eternos, acompanhamos a história de amor de dois vampiros eruditos, apaixonados pela literatura, pela música, pelas artes e ciências de modo geral. Adam (Tom Hiddleston) é um músico underground que se tornou recluso e apático. Além do seu cansaço existencial por ter 500 anos ele anda deprimido com os rumos da humanidade. Nosso sangue, contaminado, não mais os alimenta. Nada mais parece despertar o interesse de Adam. Já Eve (Tilda Swinton), com 3 mil anos de idade, demonstra ter uma visão mais otimista do mundo. Eve não só viu a humanidade passar por alguns altos e baixos como também aprendeu a lidar com os seus.
Tenho um carinho especial por esse filme por uma pá de motivos. O primeiro é a maneira como o diretor retrata seus vampiros. Eles são frágeis. Tom Hiddleston despido da resiliência cínica que caracteriza vários dos seus papéis nunca esteve tão sexy. É fácil criar empatia por duas figuras trágicas que pertencem a esse mundo muito mais do que nós em nossas existências passageiras, mas que, justamente por flertarem com a eternidade, precisam buscar ativamente maneiras de forjar e fortalecer os vínculos com o entorno e com a própria existência.
Numa entrevista de divulgação Tilda Swinton comenta o quanto foi importante pensar a quebra do conceito de geração para a criação dos personagens. Isso está lá visualmente em cada aspecto da fotografia e da composição de Adam e Eve. É inevitável para mim pensar na sexualidade dos vampiros. A androgenia que os une se dá não como traço de contestação das normas de gênero do contemporâneo, mas como um efeito natural da longevidade que os liberta dessas normas. Mas a fala de Tilda Swinton se refere à arte. A partir do momento em que você domina o peso da eternidade, você se vê diante de séculos de músicos, cantores, compositores, pintoras, escritoras, artistas… Esse vampiro, que somos nós, pode ler Micheliny Verunschk e Bruno Ribeiro, dois escritores brasileiros contemporâneos, e pode ler Mary Shelley (1797-1851) e Edgar Allan Poe (1809-1849). Um movimento sutil de pescoço na direção do passado e do futuro.
Lançado em 2013, Only Lovers Left Alive dialoga muito com a atual fixação com o presente. Um presente não medido em décadas, anos, mas em minutos, segundos. Um presente que não constrói passado. A questão não é que 1990 esteja a 30 anos de distância, o mesmo intervalo que nos leva a 2050. A questão é a ausência de vontade de se olhar para 1990 e 2050. Entende o que quero dizer? Vemos isso acontecer em várias frentes artísticas. Na literatura não é um fenômeno restrito a leitores, envolve os autores também.
Na época do lançamento de Nossa Parte de Noite, da Mariana Enríquez, li uma resenha sobre o romance, não lembro se brasileira ou gringa, dizendo que o horror tinha se tornando um emaranhado de referências, piscadinhas constantes para o leitor. Dizia isso como um elogio ao livro por Mariana Enríquez não fazer isso na história. (Fun fact: faz sim). Já eu, acho que mais do que nunca nós precisamos dessas piscadinhas, desses elos que nos levam a girar o pescoço para o passado e para o futuro. Fortalecer esses elos é preservar a memória cultural e a tecitura da realidade. A fugacidade atual na qual estamos imersos e que nos levou, por exemplo, a teasers de 20 segundos antes dos trailers de 2 minutos porque 2 minutos se tornou tempo demais para se prestar atenção em algo, favorece os artifícios de reescrita da realidade usados pelo fascismo. Favorece o ritmo desenfreado de vendas que sustenta o capitalismo. Mas prejudica esse organismo vivo chamado cultura do qual a arte faz parte. Alguém chame Philip K. Dick aqui agora mesmo e me faça parar.
Fotografias alucinógenas
Mas não foi a capacidade de Adam e Eve de admirar a cultura num espectro de séculos que me fez dedicar essa edição da Encruza ao filme de Jim Jarmusch. Foi uma questão ainda mais pessoal. Depois de quatro anos de bolsonarismo com cobertura de pandemia e granulado de crise financeira, eu me sentia desconectado. De tudo, inclusive da arte. E a arte sempre foi fundamental na minha forma de me relacionar com o mundo. Foi a arte que me ofereceu chão para seguir em frente nos anos mais pesados de homofobia.
No filme, ao ligar para Adam e percebê-lo estranho, na mais pura bad, Eve decide voar ao seu encontro. Em certo momento ao inspecionarem um ambiente escuro, Eve encontra cogumelos. Amanita muscaria. O cogumelo mais famoso da literatura. Ao percebê-los crescendo ali, num lugar inóspito e fora de época, Eve pergunta a Adam “Você viu isso?”. Existe maravilhamento no seu olhar. A possibilidade de ainda se surpreender também a encanta. Adam faz um comentário, mas acaba perdendo o interesse. Já Eve vira para os cogumelos e fala “Vocês sabem que não deveriam estar aqui”. Uma questão de pertencimento.
A cena suscita alguns debates. Seriam os cogumelos uma metáfora para os vampiros? Ambos “seres” antigos que se relacionam com o mundo de maneira diferente de nós. Que nutrem certo mistério, que existem em lugares úmidos e escuros muito mais do que abertos e ensolarados. Há aí um simbolismo criado pela relação entre consciente e inconsciente possibilitada pela arte.
Embora exista uma resposta oficial para os cogumelos do filme (dita por Jim Jarmusch numa entrevista, não vou contar), foi o fascínio de Eve por aquele grupo de amanitas que perdurou na minha cabeça e renasceu dez anos depois no momento em que eu precisava reencontrar meu próprio fascínio pelo mundo.
Uma variedade impressionante, não? Belíssimos. Estranhos. Com uma rede de comunicação complexa que ainda não entendemos totalmente, vitais para a existência da vida no planeta. Estima-se que existam entre 4 e 5 milhões de espécies de fungos no mundo. A cada ano descobrimos por volta de 2 mil novos deles. 90% deles ainda são desconhecidos.
São cogumelos, orelhas de pau. Mas não só.
São também fascínio, maravilhamento, telas em branco.
A poeira elementar das histórias.
Encontrada nos grandes eventos e nos mais ínfimos detalhes.
“You know you guys shoudn’t really be here”.
São inúmeras nossas pandemias coletivas e pessoais.
But here we are. And here we will remain.
Um abraço,
até a próxima
e a gente se lê.
Adorei essa edição. Tenho visto, de pouco em pouco, um aprofundamento nos estudos sobre vampiros que tem me deixado cada vez mais curioso. E vou assistir esse filme ^^
Acabei de assistir ao filme e, por me lembrar deste texto seu, vim correndo ler. O filme reverbera de outra maneira após ler o que vc escreveu. Também tenho um interesse por vampiros, também acredito que a arte possibilita formas de existência, também acredito nas permanências e na necessidade de acenos para passados e futuros, mas terminei de assistir ao filme com a sensação de que alguma coisa eu havia perdido. Encontrei no texto. Acho. E venha cá… qual o motivo do cogumelo?