Sobre ler muito, ler pouco e rituais pessoais
Porque metas de leitura não precisam ser algo ruim
Sobre a importância de ler (literatura)
Algo que aprendi nos últimos dez anos é que a leitura é uma ferramenta importante na manutenção do meu bem-estar. Falo de saúde mental, aqui. Como registro todas as leituras desde 2014 percebi que em meus anos mais saudáveis leio mais. Esse processo mecânico de estabelecer um hábito para si e defender o horário daquele hábito, acredito eu, é benéfico por si só e vale para várias coisas. Ler um livro, aprender um novo idioma, desenhar, se dedicar a um hobby, fazer meditação, calistenia, jardinagem. Sem falar que são atividades com potencial de nos manter distante da tela. Distante desse estado zumbi que nos colocamos por vontade própria (?) olhando para coisas que pouco nos interessam, geralmente irrelevantes, e que nos tiram mais do que oferecem. Muito se fala de economia da atenção. Costumo dizer que da maneira como as redes sociais evoluíram isso já ficou para trás. Porque pensar em termos de economia da atenção cria a ilusão de que ainda temos controle de quando e como usamos a moeda corrente. A meu ver, deixamos de ser donos da moeda e passamos a ser recurso minerado. A atenção não é mais a moeda, é o elo criado para nos manter ali apáticos enquanto algo valioso é extraído de nós: nossa capacidade de discernimento, amplitude de pensamento, o que for. É uma diferença sutil, mas existe. Os likes são só fumaça e espelhos. E tenho me disciplinado para me expor a isso de maneira controlada.
“Toda tecnologia nova é um encontro numa encruzilhada, uma barganha”, diz uma personagem do jogo Neo Cab.
Sobre a leitura, e aqui uso a percepção do escritor: ler faz as minhas engrenagens funcionarem melhor. Escrevo com mais qualidade e facilidade quando leio mais, mas digo na vida como um todo. Porque ler me permite um exercício de concentração em que as informações não são fornecidas de maneira aleatória, acelerada e fragmentada (quer dizer… pode até ser, mas você entendeu meu ponto). No caso da literatura é um exercício acompanhado pelos estímulos emocionais vindos da imersão nos elementos característicos de uma narrativa. Uma imersão de longo prazo num mundo que só se põe de pé quando nós, leitores, nos propomos a ligar os pontos. E esse movimento de ligar os pontos é algo que tem sido propositalmente atacado e tirado de nós.
Talvez ler me faça tão bem simplesmente porque ajuda a equilibrar essa balança. Talvez seja algo mais profundo do que isso.
Sei que existe todo um debate sobre a pressão de se ler muito dentro da cada vez menor comunidade de leitores, do grande Round 6 que nos estimulam a perseguir exibindo resultados, e concordo que isso seja ruim. Mas para mim manter um ritmo de leitura é sinônimo de qualidade de vida, assim como manter a frequência no Pilates e das corridas e caminhadas (tenho falhado nessa parte). Ou ir a um restaurante legal de vez em quando porque sim. Não é uma questão de vida performática. É uma questão de entender os próprios processos e ser fiel a eles. Entender o que nos dá prazer. Melhor do que ser drenado, exaurido, minerado pelas redes sociais, ou ficar em estado de inação, de apatia, mesmo que raivosa. Porém, reafirmo meu ponto, importante fazer isso sem sair da economia da atenção e cair na economia do cansaço (para citar Byung-Chul Han).
Incluo aí no exercício de bem-estar o prazer intelectual de ver o tanto de livros novos que conheci, autoras que reencontrei, assuntos novos quando se trata de livros teóricos, essa questão de ampliar repertório que é tão importante para navegarmos num mundo cada vez drenante e cansativo. E fundamental para quem escreve. Sobre o que for.
Gosto de aprender. E gosto de aprender através da arte. Os grandes vilões contemporâneos, se pararmos para pensar, têm hoje como ponto em comum o plano de se apossar de narrativas e desassociar a arte do seu componente humano. O exercício de poder costumeiro mas com novas armas na mão.
No fim, acho que junta um pouco de tudo como motivação para ler BEM. Mas o aspecto ritualístico cartesiano de “sentar para ler” é a peça fundamental desse raciocínio. E aqui retorno ao início. Palavras bonitas à parte, talvez seja uma questão neurocognitiva, simplesmente. Olhos que se movem na horizontal no seu devido tempo e não para cima e para baixo de maneira frenética.
Então, sim, tenho as famigeradas metas de leitura. Metas de filmes. E vou direcionando isso para objetivos específicos. É divertido, dá certo para mim.
“A leitura profunda e concentrada tem sido estudada e comparada a estados meditativos de intenso prazer. O esforço mental é alto, mas produz recompensas que conseguem se estender na duração, em fruição. Há algo no prazer que demanda a nossa atenção. A baixa qualidade da atenção também produz a precariedade do prazer. A insatisfação e a inquietação constantes que alimentam uma engrenagem digital de dinheiro.” - Da newsletter Outras Estratégias Sensíveis, de Ana Beatriz Rangel.
Um guia de leituras
Parte do meu cartesianismo é estabelecer no começo do ano um “guia de leituras”. Dou uma geral na estante física, na virtual, e monto uma lista com coisas que estão lá e eu estou “enrolando” para ler. Ao longo do ano vou acrescentando coisas e nem sempre leio tudo que entra na lista, mas essa seleção se tornou um ritual de fim de ano. Eu que não sou chegado aos tradicionais como comemorar aniversário, Natal, etc., criei esse para mim. O exercício de pensar as leituras me ajuda a tirá-las do piloto automático. Tenho realmente lido o que quero? Lido mais homens? Mulheres? Autores de que país? Livros sobre quais assuntos?
Parte da graça está em burlar as próprias regras, claro. Tem livros que entram para o guia e parecem se tornar ainda mais intocáveis, ficam parados servindo de criadouro de aranhas. Outros entram e somem de lá num estalo de dedos dando espaço para novas adições. É como olhar para a estante e pensar “como assim você está enfiado aí há 5 anos?” e descobrir que chegou o momento perfeito para aquela leitura.
Apesar de ser autor e falar de literatura é raro eu ser incluído em envios de divulgação das editoras. Então o jeito é ir esperando as promoções aparecerem. Nem sempre dá para me manter atualizado com lançamentos porque o dinheiro é um só para tudo. Mas nem acho de todo ruim. O tempo do livro é muito particular e entre o clássico e o lançamento da semana existe uma quantidade infinita de boas opções.
Nesse 2024 que se aproxima do fim escolhi três eixos de leitura: tirar o atraso de literatura brasileira contemporânea, ler mais livros de horror e ler alguns “clássicos modernos” que, eu imaginava, seriam escolhas certeiras.
Por obra do acaso e de uma curadoria mais cuidadosa, foi um ano em que mesmo as leituras que menos curti valeram a pena. Fica até difícil fazer um top 10 de recomendações.
Para 2025 seguirei me atualizando de literatura brasileira contemporânea (favor visualizar o meme “você não fez mais do que a sua obrigação”). É bom ver que estamos numa fase de abundância de lançamentos de qualidade. Curta você gêneros realistas ou insólitos, tem livros (e quadrinhos) para todos os gostos. Os outros eixos ainda preciso pensar se existirão.
Seção extra: Elocubrações newsletteiras sobre 2024
Para fechar, esse foi um ano de aprendizado aqui na Encruza. Minha “pauta” ao pensar a direção de 2024 foi bem simples: arte = política. A edição sobre identitarismo trouxe muitas leituras e muitos xingamentos (de gente sem rosto e sem nome). Apesar da casca grossa me cansou demais lidar com isso. Me chamarem de “esquerda jairme” foi engraçado. Mas de “radical extremista” me fez pensar em Madonna nos anos 1990 dizendo que é preciso muito pouco para chocar uma sociedade conservadora. Também fui chamado de “podre lacrador”, mas isso foi por falar uma mísera vez de Israel vs Palestina lá no Instagram. Com direito a “desejo para você tudo que os reféns estão passando” e “lindo para a geração respeitem minha identidade”. Coisa fina. O que eu disse que causou tanta revolta? “Não existe lado bonito na guerra”.
Acho que só ouvi esse tanto de xingamentos quando elogiei O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, aqui na Encruza em 2023. Teve até conhecido me ligando da rua afobado num clima de “como ousas gostar de um livro escrito em prosa poética…” de tão estarrecido que ficou. Parecia até que o livro era meu ou que eu estava ganhando para defendê-lo. (Aconteceu, mas cito como uma piadinha para deixar o clima mais leve). E, sim, continuo gostando da onça.
Textos de assuntos mais abrangentes, e uso aqui abrangente no sentido de que soam como um dilema humano e não um dilema do humano brasileiro, renderam muitas leituras e comentários. Falar da importância de manter hobbies, de inteligência artificial escrevendo ficção e de exposição cruel de gatos em redes sociais foi ó, sucesso. Sem xingamentos. Sem interação com olavistas especialistas em linguística.
Empatadíssimos com os gatinhos ficaram os textos sobre literatura. Falar de Elvira Vigna e sua trilogia da traição e entrevistar Fernanda Castro renderam conversas muito legais dentro e fora do Substack. É meio óbvio, mas ao mesmo tempo me deixou surpreso.
Quando tentei falar de literatura em formato de podcast o alcance foi bem menor. E me custou uma grana, já que não sou eu que edito. Inclusive fiquei com duas edições acertadas para programas que nunca gravei. Se você curte o formato, pode procurar aqui no Substack ou nas plataformas costumeiras.
A lista de sugestões para quem quer conhecer horror latino-americano e o texto sobre os mandamentos do horror queer seguem sendo os “clássicos” da Encruza. Vira e mexe alguém redescobre os dois. Pode ser um sinal de que edições com um assunto mais claro e mais específico façam mais sucesso. Ou pode ser pelos assuntos em si. De repente misturando tudo eu descubro.
As de arte, que estão entre minhas favoritas de escrever, foram as que renderam menos conversa. Gran Fury e Leonora Carrington se saíram okay. Mas sei que foram importantes para pessoas pontuais e isso já fez valer a pena.
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Para 2025, queria direcionar um pouco mais o eixo para artes visuais e narrativas. Se quiserem me ajudar a pensar o que pode ser ajustado, meu email e a caixa de comentários estão à disposição como de costume. Não é uma questão de aumentar o número de leituras e sim de ir moldando a identidade dessa encruzilhada.
Por fim, fica meu agradecimento a todos que passaram por aqui ao longo do ano. Que contribuíram com carinho e boas conversas. Se conectar com as pessoas se desarmando do próprio ego (em vez de usar as conexões para reforçar o culto a si mesmo) é um aprendizado constante e que me faz muito bem. Ted Lasso provavelmente teria algum comentário para fazer a respeito. Mas eu não sou lá muito lassiano.
Nos vemos novamente em 2025.
Quem sabe com uma lista de sugestões de livros para um clube de leitura imaginário?
Pra quem é de festa, boas festas.
Um abraço,
Eric Novello
A encruza foi uma das minhas leituras correntes do ano, e me identifico muito com seu olhar sobre metas e hábitos. Não é porque caiu na brisa performance que não é algo que funciona e faz bem quando colocado d eu jeito legal na rotina. Gostei de saber que você enxerga o ano com eixos temáticos, anotei aqui pra pensar se faz sentido pra Ovelha
Acompanhar a Encruza fez meu ano de leituras muito melhor!